segunda-feira, junho 07, 2010

As Minhas Janelas

Houve um tempo em que a minha janela dava para um jardim, e ao longe viam-se campos de milho, e mais ao longe uma “bouça” com árvores com árvores imensas e diversas. O jardim era escalado em socalcos, uns com relvados, outros com canteiros de flores delineados com buchos , outros de árvores de fruta com laranjeiras pejadas de laranjas azedas, que originavam a tanto apreciada “marmelade”. E no meio, uma capela.

Havia dias, que grupos de pescadores com suas famílias, chegavam de longe, da Póvoa do Varzim, de Viana do Castelo e de outras praias onde, onde á costa deram, diziam, por milagre, depois de uma noite louca no mar revolto. Traziam muitas garrafas de azeite, para que se acendessem lamparinas todo ano em agradecimento a Nossa Senhora de Monserrate.

Nós, os “meninos” da casa, gostávamos muito destas incursões. E ouvi-los contar á nossa criada, que os conduzia até á capela, aventuras dramáticas. Havia sempre alguém que tinha sobrevivido a um naufrágio. Depois essa gente lá se ia embora, prometendo voltar para o ano seguinte, e distribuindo rebuçados de mentol de um tostão.

No Verão, ás tardes, vinham outros meninos brincar connosco. Eram mandados para o para o nosso oásis. E ás cinco horas, a “nossa” Geca, (a criada que tomava conta de nós), chamava para o lanche, que era papa maizena colorida com gema de ovo. Mas do que gostávamos mesmo, era de comer a broa de milho ainda quente, saída do forno dos caseiros, cuja tampa era fixada com bosta de boi. Havia um cheiro a terra molhada nesses fins de tardes de Verão, enquanto os bois davam á “nora,” e os campos ficavam bordados a regos de água.

Nesse tempo não desconfiava de nada.



Houve um tempo em que a minha janela era muito alta. E não era a “minha” janela. Eram as janelas de um internato de Doroteias

E era proibido aproximar-se das janelas.

E lá dentro era o silêncio. Por vezes cortado por a passagem de uma freira pelo longo corredor, fazendo tilintar o rosário com o crucifixo dependurados ao pescoço.

E depois outra vez o silêncio.

E a missa da manhã, e as aulas, e o refeitório. Tudo em silêncio.

Às duas da tarde, soava o grito de vida das meninas, na meia hora de recreio.

Depois voltava o silêncio, as horas de estudo, o terço e bênção, as orações da noite.

Até ao sepulcral silêncio do dormitório.

Havia meninas que iam a casa de quinze em quinze dias. Mas as que os pais eram de longe, da província, era muito raro irem. E isso magoava-me a alma. Essas, tinham “enchidos” escondidos nas malas, pois era proibido ter comida vinda de casa. Fazíamos incursões á sala de arrumação das malas, para elas matarem saudades da “terra”.

Depois havia castigos para elas e para as cúmplices. Que eram a ausência do recreio.

O total silêncio todo o dia.

Havia ainda, as que os pais estavam em África, a trabalhar muito. Para que elas pudessem andar num colégio tão bom. Para que tivessem uma educação esmerada. Para que pudessem conviver com meninas “finas”.

Essas nunca iam a casa.

No dia em que começávamos as férias de Verão, virávamos os colchões para arejarem, antes de virmos embora. Já de malas feitas, e os pais na portaria á espera.

E elas ficavam. Até nesse dia, elas ficavam.

Tinham sete, oito ou nove anos.

A infância tinha acabado a meio da infância.

No entanto eu ainda era criança, e ainda

Não desconfiava de nada.



Houve um tempo em que a minha janela dava para o jardim da Gulbenkian.

Tinha vinte e cinco anos e uma filha pequena.

Devido á barulheira dos carros que passavam na Avenida de Berna, as janelas estavam sempre fechadas. Mas atravessávamos a rua com o triciclo, e íamos brincar para o jardim.

Éramos felizes as duas, naquela «casinha pequeninha», como ela dizia.

Um dia recebi um telegrama, do Comando das Forcas Armadas na Guiné.

Dizia: Cumpre-nos o doloroso dever, de informar Vossa Excelência, da morte do capitão miliciano, M…………………………….., comandante da companhia nº ……., sitiada em Enchei-a, pertencente ao comando de batalhão de Bissorã……,

Aí percebi que os trilhos da vida por vezes descarrilam, e então,
Comecei a desconfiar



Agora, neste tempo, a minha janela dá para a Sé de Lisboa e Largo de Santo António.

Daqui vejo, os turistas a correr aos gritos atrás do ladrões, depois de ficarem sem as mochilas.

Os casamentos de Stº. António, e suas noivas com rendas e tules, e diademas de fantasia.

A procissão de Nossa Senhora da Saúde, com as prostitutas do Martim Moniz a cantar, ladeando o andor.

O S. Jorge a cavalo a entrar na Sé, no dia do Corpo de Deus. A missa campal com o Cardeal todo enchapelado. Depois sai, no seu cavalo branco, acompanhado por um homem vestido com malha de fero. Vão em procissão em direcção da baixa.

Tenho outra janela virada a Sul, que se abre sobre a praça do Campo das Cebolas e suas palmeiras.

Depois delas, o Rio.

A doca do Jardim do Tabaco e a magnificência dos seus iates de visitantes reais.

Mais ao fundo, os enormes cargueiros.

Aos fins-de-semana, o rio transforma-se num mar de velas brancas em regata.

Não espero coisa alguma. Vivo um dia de cada vez.

Já não desconfio de nada.

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