domingo, junho 06, 2010

A ALMA DOS REMEDIADOS CRÓNICA QUATRO

"O Octogenário Abandonado"

O Sr. Alfredo Costa, de 88 anos, deu entrada no Hospital de Santa Maria no princípio de Novembro. Diagnóstico: pneumonia.

Ficou na enfermaria 3, na cama 6. Os outros doentes, todos recuperavam de cirurgias. Excepto um homem novo, de trinta e quatro anos, com um cancro, em estado terminal, que só ali permanecia para ter os cuidados paliativos.

Nos primeiros dias Sr. Alfredo, esteve muito mal, com febre altíssima. Não falava, delirava apenas. Ninguém sabia que espécie de doente era aquele, talvez um idoso que ia dali sair sem vida, que foi com certeza o que a sua família pensou quando o deixou lá.

Mas foi melhorando, e logo se começou a ouvir o seu: «Muito obrigadinho», ou «se me faz o obséquio», por qualquer serviço das empregadas ou enfermeiras.

Logo que começou a sentar-se na cama para comer, mesmo sem apetite nenhum, elogiava as refeições, que era tudo «muito gostoso» e «muito asseado».

À hora da visita, avançavam pelos corredores multidões de familiares, com os seus pacotinhos da pastelaria e sacos de plástico de roupa lavada, procurando esta ou aquela enfermaria, perguntando uns aos outros para que corredor haviam de virar. Uns entravam na enfermaria 3, esfusiantes de contentamento ao encontrar finalmente o “seu doente”.

Para o Sr. Alfredo nunca entrou ninguém.

Passaram-se muitos dias, e os familiares dos doentes perceberam que também vinham visitar o doente da cama 6, e ele adquiriu o direito de receber o seu embrulhinho de bolos de arroz e umas peças de fruta. «Não era preciso vossemecês incomodarem-se», ou, «agradeço muito a gentileza», dizia satisfeito.

Há hora da visita, todas as famílias eram a família do Senhor Alfredo.

O doente canceroso, embora com calma e resignado ás suas dores constantes, estava sempre muito irrequieto para lhe subirem ou descerem a cama, procurava constantemente uma posição menos incomoda.

E cortava-lhe a alma, ao Alfredo, quando uma empregada menos paciente respondia aos apelos do jovem homem,

«olha que temos mais que fazer do que estar aqui todo o tempo a dar-te à manivela da cama, sossega homem, vê lá se dormes».

«Como se sossegar e dormir fosse solução para as dores deste desgraçado, grande cabra, ao menos que lhe fale com carinho, mas não, não sabe, devia estar só esfregar o chão e estar sempre caladinha, esta coirona», resmungava entre dentes o Alfredo.

E virando-se para o rapaz: «Você chame sempre por mim para lhe “ajeitar” a cama, mesmo a meio da noite, faça de conta que tem aqui um pai a zelar por si».

E embora se preocupasse com qualquer infortúnio dos outros doentes, não era um homem triste. Pelo contrário, até emprestava uma certa alegria aquele lugar, acordando sempre muito animado, com uma piada nova na ponta da língua para quantos o rodeavam.

De manhã quando vinham fazer as camas, lá começavam as empregadas,

«Então, Sr. Alfredo, a sua namorada? quando o vem ver? ou já arranjou outro? E ele:

«Namoradas, namoradas…, não as provo desde moço! Desde que a minha falecida se foi, já vai para 12 anos, quem cuida de mim é a” minha Fátima”, coitadita, que já tem tanto que bulir! É a casa da patroa onde trabalha como uma moura, das oito da manhã até as seis da tarde, depois ainda tem dois escritórios para limpezas, a lida da casa dela….Ela há-de vir visitar-me, há-de, mas ainda não teve tempo, e agora tem a netinha…, o meu neto Nelson arranjou lá um caso com uma moça e teve uma filhinha, que trouxe para casa para a mãe cuidar».

Deram-lhe alta no dia 20 de Dezembro.

«Ena, que sorte, vai receber os presentes do Pai Natal a casa, o nosso velhote». Ajudaram-no a vestir o fato que tinham deixado nos seus pertences quando entrou no hospital. Talvez a família esperasse a sua morte, era um fato que só usou uma vez, há muitos anos, no casamento de uma neta. Era o fato adequado para se levar no caixão.

Sentado numa cadeira já junto á porta, prontinho para sair, ia dizendo: «Muito obrigadinho pelas vossas gentilezas, desejo que também vão depressa para junto dos vossos».

Estava com ar muito satisfeito, prazenteiro, parecia um noivo à espera da sua noiva. Mas a “coitadita”, (como já toda a gente chamava à sua filha), não apareceu todo o dia. Lá o ajudaram a vestir novamente bata e voltou para a cama.

No dia seguinte, como ninguém o tivesse ido buscar, teve que ficar na cama , embora sem justificação clínica. Para permanecer no hospital, tinha que ocupar a sua cama, e continuar a ser o doente nº6.

Despedia-se com ternura dos companheiros que saíam, como se fossem velhos “companhon de route”. Dava as boas vidas aos novos ocupantes das camas, interessava-se por eles e esforçava-se para que eles se sentissem o melhor possível naquela enfermaria, como se fosse um anfitrião.

_«Então, Sr. Alfredo, você não quer largar as saias da gente? Do que você gosta é de ter estas meninas todas à sua volta!», brincavam as auxiliares.

«Não tenho assim tanta pressa» (disfarçava o velho),

«Eu quero ir bem curado para não dar mais trabalho à minha Fátima, coitadita. Quando entrar em casa, quero ajudá-la com a menina, posso bem tomar conta da minha bisneta.»

Mas houve uma manhã, pouco antes do Natal, que o Sr. Alfredo quando acordou não viu ninguém na cama ao lado. A cama nº 5 estava vazia e feita de lavado, como se nunca ninguém a tivesse ocupado.

Perguntou pelo “rapazito” á enfermeira de serviço, que rispidamente lhe respondeu:«Foi transferido!».

Como quem quer dizer, «mete-te na tua vida, entende o que é para entender, e nada de conversas».

Ele dizia baixinho para si:

« Partiu o meu rapaz, partiu a meio da noite!». E foi até à casa de banho para chorar à vontade.

«Porque não eu em vez dele, que já cá não ando a fazer nada?».

Mas logo se tentou convencer que estava à espera de ir para casa. E mais uma manhã, o grupo das raparigas, com a carga do costume para o Alfredo: «Então, a “coitadita” ainda não veio buscá-lo?».

«Oh senhoras, não vedes que só em transportes ela demora umas duas horas par cá vir! Precisa de arranjar uma folga, como é há-de ter tempo, coitadita! Se a gente morasse na Sé como antigamente, não era isto. Mas quiseram vender a casa e ir para rio de Mouro! É muito longe…, e depois eu nem sei ir lá dar. Mudamos para lá há um ano. Depois de ter morado oitenta anos na freguesia da Sé! Vim da terra com os meus pais aos três anos para a Rua São Joao da Praça. Para um quinto andar, era só chegar á janela e o Tejo era todo meu. E ali fiquei oitenta e cinco anos! Ali casei com a minha falecida, (que Deus tem). Ali tive os meus filhos. Uma vida...»

Nunca se queixou da “sua” Fátima. A culpa era sempre do marido que era um egoísta. Dos filhos que eram uns “calões”. Do lugar de Rio e Mouro, que era no fim do mundo. Dos comboios que andam sempre cheios. Dos autocarros que nunca passavam a horas, etc,etc.

Lá passou o Natal, depois e Ano Novo, e depois o dia dos seus anos, sempre na esperança que a seguir ás Festas (que davam muito trabalho “sua Fátima”, coitadita), o viessem buscar.

Mas não, nunca foram.

O hospital nunca conseguiu comunicar com a família, todas as referências que deixaram eram falsas, telefone e morada.

. O caso especial do Sr. Alfredo deu entrada nos Serviços Jurídicos.

Os médicos, que já lhe tinham estima, tentaram accionar a Rede Especial de Trabalhos Continuados, com a intenção de ele continuar no hospital. Mas nada feito, ele estava curado, não havia razão nenhuma para ficar ali mais seis meses. Estava apto a ir para casa.

Acabou por ser “despejado” da enfermaria nº3, que já era a sua casa. Por intermédio da Segurança Social, foi depositado num lar.

Tudo isto sem nunca a família o ter visitado ou requisitado.

Sem comentários: