sexta-feira, novembro 25, 2011

As Janelas Da Minha Vida

UMA VIDA SEM ASAS


CRONICA UM


“ JANELAS DA MINHA VIDA”



Houve um tempo em que a minha janela dava para um jardim, e ao longe viam-se campos de milho, e mais ao longe uma “bouça” com árvores com árvores imensas e diversas. O jardim era escalado em socalcos, uns com relvados, outros com canteiros de flores delineados com buchos, outros de árvores de fruta com laranjeiras pejadas de laranjas azedas, que originavam a tanto apreciada “marmelade”. E no meio, uma capela.

Havia dias, que grupos de pescadores com suas famílias, chegavam de longe, da Póvoa do Varzim, de Viana do Castelo e de outras praias onde, onde á costa deram, diziam, por milagre, depois de uma noite louca no mar revolto. Traziam muitas garrafas de azeite, para que se acendessem lamparinas todo ano em agradecimento a Nossa Senhora de Monserrate.
Nós, os “meninos” da casa, gostávamos muito destas incursões. E ouvi-los contar á nossa criada, que os conduzia até á capela, aventuras dramáticas. Havia sempre alguém que tinha sobrevivido a um naufrágio. Depois essa gente lá se ia embora, prometendo voltar para o ano seguinte, e distribuindo rebuçados de mentol de um tostão.

No Verão, ás tardes, vinham outros meninos brincar connosco. Eram mandados para o para o nosso oásis. E ás cinco horas, a “nossa” Geca, (a criada que tomava conta de nós), chamava para o lanche, que era papa maizena colorida com gema de ovo. Mas do que gostávamos mesmo, era de comer a broa de milho ainda quente, saída do forno dos caseiros, cuja tampa era fixada com bosta de boi. Havia um cheiro a terra molhada nesses fins de tardes de Verão, enquanto os bois davam á “nora,” e os campos ficavam bordados a regos de água.

Nesse tempo não desconfiava de nada.




Houve um tempo em que a minha janela era muito alta. E não era a “minha” janela. Eram as janelas de um internato de Doroteias
E era proibido aproximar-se das janelas.
E lá dentro era o silêncio. Por vezes cortado por a passagem de uma freira pelo longo corredor, fazendo tilintar o rosário com o crucifixo dependurados ao pescoço.
E depois outra vez o silêncio.
E a missa da manhã, e as aulas, e o refeitório. Tudo em silêncio.
Às duas da tarde, soava o grito de vida das meninas, na meia hora de recreio.
Depois voltava o silêncio, as horas de estudo, o terço e bênção, as orações da noite.
Até ao sepulcral silêncio do dormitório.
Havia meninas que iam a casa de quinze em quinze dias. Mas as que os pais eram de longe, da província, era muito raro irem. E isso magoava-me a alma. Essas, tinham “enchidos” escondidos nas malas, pois era proibido ter comida vinda de casa. Fazíamos incursões á sala de arrumação das malas, para elas matarem saudades da “terra”.
Depois havia castigos para elas e para as cúmplices. Que eram a ausência do recreio.
O total silêncio todo o dia.
Havia ainda, as que os pais estavam em África, a trabalhar muito. Para que elas pudessem andar num colégio tão bom. Para que tivessem uma educação esmerada. Para que pudessem conviver com meninas “finas”.
Essas nunca iam a casa.
No dia em que começávamos as férias de Verão, virávamos os colchões para arejarem, antes de virmos embora. Já de malas feitas, e os pais na portaria á espera.
E elas ficavam. Até nesse dia, elas ficavam.
Tinham sete, oito ou nove anos.
A infância tinha acabado a meio da infância.
No entanto eu ainda era criança, e ainda

Não desconfiava de nada.




Houve um tempo em que a minha janela dava para o jardim da Gulbenkian.
Tinha vinte e cinco anos e uma filha pequena.
Devido á barulheira dos carros que passavam na Avenida de Berna, as janelas estavam sempre fechadas. Mas atravessávamos a rua com o triciclo, e íamos brincar para o jardim.
Éramos felizes as duas, naquela «cajinha pequeninha», como ela dizia.
Um dia recebi um telegrama, do Comando das Forcas Armadas na Guiné.
Dizia: Cumpre-nos o doloroso dever, de informar Vossa Excelência, da morte do capitão miliciano, M…………………………….., comandante da companhia nº ……., sitiada em Encheia, pertencente ao comando de batalhão de Bissorã……,
Aí percebi que os trilhos da vida por vezes descarrilam, e então,

Comecei a desconfiar




Agora, neste tempo, a minha janela dá para a Sé de Lisboa e Largo de Santo António.
Daqui vejo, os turistas a correr aos gritos atrás do ladrões, depois de ficarem sem as mochilas.
Os casamentos de Stº. António, e suas noivas com rendas e tules, e diademas de fantasia.
A procissão de Nossa Senhora da Saúde, com as prostitutas do Martim Moniz a cantar, ladeando o andor.
O S. Jorge a cavalo a entrar na Sé, no dia do Corpo de Deus. A missa campal com o Cardeal todo enchapelado. Depois sai, no seu cavalo branco, acompanhado por um homem vestido com malha de fero. Vão em procissão em direcção da baixa.
Tenho outra janela virada a Sul, que se abre sobre a praça do Campo das Cebolas e suas palmeiras.
Depois delas, o Rio.
A doca do Jardim do Tabaco e a magnificência dos seus iates de visitantes reais.
Mais ao fundo, os enormes cargueiros.
Aos fins de semana, o rio transforma-se num mar de velas brancas em regata.
Não espero coisa alguma. Vivo um dia de cada vez.

Já não desconfio de nada.

quinta-feira, fevereiro 10, 2011

PARADA GAY

Há um aglomerado de gente na Praça Camões. Estão-se juntando manifestantes para a «parada gay». Forma-se uma miscelânea de gente; Travestis extravagantes em fatos de noite de lantejoulas, com baton garrido e pestanas postiças. Homossexuais “cool”, de fato e gravata, com ar “ bem arrumado”. Outros mais expansivos de roupa “fashion”. Lésbicas de saias indianas e sandálias de couro, look “Woodstock”, provocatoriamente trocando carinhos Outras bem mais modestas, de pernas gordas apertadas em jeans deformados e camisas largueironas. Misturam-se com voyeurs que passam no Chiado e se aproximam para ver aquela “fauna”.
Mas a festa começa a ficar mais colorida, quando inesperadamente, surge um grupo de velhas prostitutas do Bairro Alto, ( a mais nova tinha uns cinquenta anos), vistosas, mini saias de ganga, cabelos permanentados, tricolores entre o preto, amarelo e branco. O que queriam, era mesmo gozar com os manifestantes, e batendo nas nádegas e no peito, gritavam para os transeuntes: «Oh filhos, deixai-vos destas modernices, nós ainda estamos boas como o milho, para que servem estes palhaços!?». E vá de levantar as saias e abrirem os decotes das blusas. Os homossexuais eram gozados, mas não hostilmente, agora as lésbicas, ouviam insultos e dos grandes. Estas, indignadas por lhes cortarem a dignidade da manifestação, chamaram a polícia.
A Tekas, de longos cabelos loiros, roupa muito justa, parecendo mais um réplica da Barbie,( neste caso com cinquenta tal anos), do que uma mulher de carne e osso, saía de uma boutique de multi-marcas ali na praça. Fica espantada com toda aquela cena. Feridos nos seus valores morais, indigna-se com o teor da manifestação, e põem-se ao lado das velhas, apoiando os seus protestos galhofeiros.
Mas quando a policia rodeia o grupos das prostitutas e as mete na carrinha, não percebeu que a Tekas era loira de madeixas feitas num bom cabeleireiro, não amarela oxigenada de raiz branca, e que a mala era do Dolce e Gabana e as botas do Gucci e as calças do Armani. Enfiam-na no banco de trás junto com as outras, rumo á esquadra da Praça da Alegria.
Já lá dentro, o grupo do Bairro, sempre na galhofando, «Oh filha, isto prá gente é como comer tremoços», foi-se identificando, até chegar a vez da Tekas.
Um polícia hesitante lê alto: «Maria Teresa Cacona …». Gargalhada geral, o mulherio fica delirante. «A senhora por favor confirme, chama-se Maria Teresa Cacona Rodriguez?».Os policias disfarçavam o riso com esforço enquanto reprimiam as mulheres que gritavam grosserias. A Tekas, de cabeça bem erguida, com ar altivo e digno, diz: « Sim, chamo-ma Maria Teresa Cacona Rodriguez. Sou Cacona do meu pai, de quem tenho muito orgulho, foi um grande empresário na Venezuela, e a minha mãe era finíssima, descendia do rei duma tribo índia». Neste momento as gargalhadas transformaram-se em gritos. Os polícias deixaram de se conter e riam descaradamente. «Vocês não percebem nada do meu estatuto social, são completamente ignorantes! Mas se vissem as revistas saberiam quem era a Tekas. Foi a quinta mais vestida do país na revista “CARAS”. Sou Rodriguez do meu ex marido, que pertencia á nobreza espanhola. E não estou para estar para aqui a ser enxovalhada por esta gentinha! Eu sou uma grande empresária, com lojas de grandes marcas de moda por todo o país. Não sabem mesmo quem estão a falar! Que loucura, só neste terra miserável é que isto pode acontecer a uma senhora! Mas eu vou sair imediatamente daqui». (pega no telemóvel). «Tá, Nunu, estou na policia…não, não houve desastre nenhum, filha, o que houve foi um ataque de estupidez duns policias, eu já te conto..., só te digo que estou aqui enfiada com umas de mulherezinhas da rua, mas isto não fica assim….Sei lá, se calhar porque eu estou arranjada para ir com vocês á estreia do Politeama logo á noite, e sei lá o que estes ignorantes pensaram… se é que pensam! O teu chauffeur que venha buscar-me á esquadra da Praça da Alegria, depressa, por favor, acho que me vai dar um ataque não sei de quê…, de raiva…, Tá minha linda, até já.»
Virando-se para os agentes: « não tenho mais nada a dizer, mas podem crer que isto vos vai sair muito caro». Cruza a perna, e chocalhando as imensas argolas doiradas da mala, tira uma “Hola!”, com baronesa Von Thyssen na capa, e diz: «Vou esperar o meu chauffeur, não me macem».

terça-feira, janeiro 18, 2011

A ALMA DOS REMEDIADOS

CRÒNICA DOIS



“ A AMANTE DE ALFAMA”



A rua das Canastras, travessa estreita ladeada pelo “Arco das Portas do Mar” e pelo «Arco Escuro”, fica junto á Sé. Dali para a frente começa o bairro de Alfama.
Sendo as casas todas pós terramoto, algumas com 200 anos, a câmara vai lentamente fazendo obras de restauro. Há permanentemente contentores de lixo, cheios de bocados de estuque, pedaços de madeira, azulejos etc. então, em frente a casa do sr. Armando que habita o rés do chão do nº1, É já habitual permanecer um contentor para o que der e vier, que está sempre cheio.
A rua, habitada exclusivamente por idosos, há uns anos para cá vai ficando deserta de gente. Uns foram para a “terra” acabar os seus dias, outros morreram, e os filhos nem falar-lhes em viver naquelas casa velhas, querem a sua casinha em Rio de Mouro ou no Barreiro. Tudo isto para regozijo dos proprietários, que deixam os prédios vazios, sonhando com um futuro dourado daquela zona á beira-rio.
O Armando já há uns anos que anda a proclamar para vizinha da janela em frente,
« para Agosto vamos para a aldeia e não voltamos». Mas em Setembro voltam sempre. É todos os anos a mesma coisa.
A mulher, a senhora Elvira, sempre com a sua voz delicodoce, é enjoativa de tanta simpatia e salamaleques.
«Então, minha querida senhora, anda melhorzinha? agora parece-me mais cheiinha, gosto mais de a ver assim. E a netinha? Deve parecer um anjinho!»
«Está tudo bem, obrigado, e vocês?»
« nós estamos mortinhos por ir para a terra. Mas o meu Armando tem sempre uns trabalhinhos pendentes.... agora aqui é só chineses e indianos, (fazendo um gesto que abrangia o bairro da sé, baixa e tudo mais) e isto já não interessa a ninguém. e temos lá uma casinha que é um mimo. Muito gostava que a senhora lá fosse...vamos lá ver...»
E a conversa nunca mais acaba. Quando vou na rua e a vejo á janela, tenho que fugir.
Uma bela manhã de Junho, o sr. Armando proclama da seu “púlpito”
«é para o próximo mês, já avisamos o senhorio, vamos de vez para o nosso sossego, já cá andamos 50 anos a trabalhar no duro, chegou a nossa hora!»
Passados dias, á noitinha, no meio do “meu” telejornal das nove, ouço grande gritaria vinda da rua, corro para a varanda. o sr. Armando no meio da rua num discurso bem alto, « já te disse para não pores mais aqui os pés, deixa-te lá ficar na Rua dos Remédios, “sua puta d, Alfama”, não te venhas meter aqui na mina vida, eu vou para onde eu quiser! mas que grande porra, esta puta só gosta de me moer a cabeça!
E uma velha, com setenta e muitos anos, com o cabelo metade oxigenado, metade branco, uma chinela no pé e outra na mão como arma de arremesso, gritava-lhe,
« cabrão, julgas que ao fim destes anos todos me deixas, cabrão de merda, vai para a tua terra, vai, que eu hei-de pôr-te os cornos até ao último dia da minha vida!»
Depois deste diálogo eloquente, o Sr. Armando pega na mulher e enfia no contentor, empurrando-a para baixo, cobrindo-a de bocados de tapume e cacos de telhas. E ninguém, ninguém mesmo, nem um cão se via na rua. Das janelas viam-se dedos a entreabrir as cortininhas de nylon branco. Haviam olhos á espreita, mas as cabeças não se mostravam. A única espectadora frontal era eu, do cimo da minha varanda num quarto andar. De início até estava entretida a ouvir o diálogo daqueles dois, mas quando a mulher é “enterrada viva”, desato aos gritos,
«socorro, acudam».
O Armando vai para casa com ar tranquilo sacudindo as mãos, e muito calmamente fecha a porta, como tivesse dado por encerrado um assunto pendente há muito tempo.
Bacalhoeiros, em frente á minha varanda das traseiras. Estava a apanhar o fresco da noite em pijama, e disse que não podia fazer nada. Voltei para a varanda donde via o espectáculo. Fiquei Passam-se alguns minutos e começo a ver a cabeça da velha a emergir da lixeira, agora toda cinzenta do lixo e da poeira., ela consegue a muito custo sair cá para fora, e tirando os bocados de estuque da cabeça para poder ver, grita em direcção a casa do Armando,
« cabrão do velho, corno de merda, julgava que me enganava, mas vai para o caixão mais depressa do que vai para terra»
O homem sai de casa, e calmamente, diz,
«se não calas essa boca, eu racho-te ao meio»
A velhota com toda a genica que arranja, ainda responde,
« tu?, “ó frouxo”, nem forças tens para tocar viola!»
Em breves instantes o homem entra em casa e volta a sair, agora com um machado na mão,( eu nunca tinha visto um machado tão grande!, parecia o machado dos anões da Branca de Neve, dos livros ilustrados da minha meninice, onde o machado era imponente comparado com os anões). com um ar determinado, avançando para ela, diz,
« vou-te matar!»
Aí, atravesso a casa a correr, gritando sempre,
«oh Sr. Álvaro, acuda aqui»
O Sr. Álvaro é o presidente da Junta a de freguesia da Sé, e mora na rua dos bacalhoeiros, em frente á minha varanda das traseiras. Estava a apanhar o fresco da noite de tronco nu e calças de pijama, e disse que não podia fazer nada. Voltei para a varanda donde via o espectáculo. Estava rouca de gritar “socorro”. O cão do vizinho do Esq. desatou a ladrar-me na varanda ao lado.
E nunca ninguém apareceu! Só as cortinas de terylene” mexiam…
A velha viu que a “coisa estava feia”, ainda a largar muita poeirada, cambaleando sem as chinelas, vira-lhe as costas, e já calada segue em direcção a Alfama.
Ele desiste do “homicídio” e mete-se em casa.
Minutos depois, quando o episódio parecia dado como acabado, a Sra. Elvira, abre a janela de par em par (até aí não se tinha notado a sua existência, o marido bem podia ter matado a “outra”…). E tal esposa legítima, embora de vernáculo popular, grita para a velha, que se afastava com esforço,
« grande cabra, que me andas a comer o homem há 40 anos, vai morrer para longe, puta do caralho, que este a quem o padre me uniu, há-de morrer meu marido!»
A rua toda ouviu, e sempre invisível, ficou ainda mais silenciosa.

A ALMA DOS REMEDIADOS

CRÓNICA TRÊS

"GEMER EM CRIOULO"

Hoje, no Hospital STª Maria, ao meu lado, na sala de espera, uma mulher gemia em crioulo.

Com a cabeça atada com um lenço colorido, escondendo os estragos da quimioterapia, vestia um pano africano com cores que agrediam a manhã de rigoroso inverno, sem meias, contrastando com fileiras de senhoras que, de calças e botas, sacudiam a chuva das gabardines e casacos compridos.

Hoje, no hospital, ao meu lado, uma mulher gemia em crioulo.

Num doce crioulo ao som do qual eu descobri as mornas no principio dos anos oitenta, na voz do Bana, no «Monte Cara».

Ao seu lado, uma jovem, que tentava que fossem atendidas no gabinete dos cuidados paliativos.
A mulher, torcida de dores, tentava acomodar-se meia estendida em duas cadeiras geminadas, de plástico moldado para assento, duras como pedras, ironicamente verdes alface.
Como se naquele lugar ligado á dor e á morte, algo pudesse inspirar frescura.
A mulher gemia baixinho, e dizia, na sua dor, palavras com um som lindíssimo, musicais, que eu não percebia o significado.
Como a jovem acompanhante demorasse á porta do gabinete médico, toquei-lhe no braço e perguntei-lhe se precisava de alguma coisa. Olhando-me com uns olhos enormes, continuou a gemer num misto de doçura e sofrimento.
A única cumplicidade que eu podia ter para com ela, era olha-la enquanto ela me olhava, e gemia em crioulo.
A jovem chegou, perguntei se era filha, se precisava de alguma coisa.
Que não, muito obrigado, com os mesmos olhos doces cravejados de lágrimas, que “era muito complicado”.
Era o que ela achava conveniente dizer daquele caso de doença extrema:
“Era muito complicado”!

A sogra tinha muitas dores, estava sempre a gemer em casa.
«Quer ir morrer para Cabo Verde. Para casa. Se tivesse vindo para Lisboa logo, quando o tumor apareceu... Assim “era muito complicado”....Mas lá em Cabo Verde não há hospital como aqui, há muito médico, mas é particular, é muito cara operação, vêem sempre a Lisboa, ou França ou Holanda, lá é muito dinheiro....Mas para vir, “eles” têm que dar papeis e demoram muito, demorou muito para ela, agora é muito complicado, médico diz que não pode operar, não pode fazer nada. Ela quer ir embora, tem lá dez filhos, quer ir morrer lá. Está á espera do filho que está na França, o meu marido, que vai levar ela para Cabo Verde, mas só pode vir daqui a um mês. Sei não, é muito complicado, não sei se a morte dela vai esperar...era bom era, que a morte esperasse, para ela ir morrer lá…»

Hoje no hospital, ao meu lado, uma mulher gemia em crioulo.

O crioulo das “coladeras” e do “ funana”ao som dos quais eu tanto dancei na noites da “ Lontra” e mais tarde no “Ritz Club”.
Quando para mim as noites acabavam ás cinco e meia da manhã e seguiam-se pequenos- almoços de “cachupa” em casa da “tia Zézé”, esmerada cozinheira cabo-verdiana que recebia na sua casa, um segundo andar da Conde Barão.
No Verão, aí se juntavam muitos cabo-verdeanos vindos de férias de vários países da Europa.
Riam e bebiam cerveja com “o branco” vindo da Lontra. “O branco jornalista”, como eles chamavam á fauna de intelectuais bêbados que tropeçavam por ali de madrugada.
Era fascinante ouvi-los no seu gesticular elegante, na sua fala melodiosa!

O crioulo em que me delicio ouvindo as mornas de Cesária, nas noites solitárias na minha sala...
O crioulo do Tito Paris, ao som do qual me diverti, ainda há poucos anos, no inesquecível Beleza.
.
Hoje, no hospital, ao meu lado, uma mulher gemia em crioulo.

No mesmo crioulo em que a “minha” Francisca, oriunda da ilha do Sal, me irrompe pela casa ás terças-feiras de manhã, acende a telefonia na rádio África, e exclama num tom tão alegre, quase infantil:
«Então, D. Manuela, agora que está mesmo boazinha de saúde é tem que ir dançar, e não diga que não vai não, agora é que senhora tem que ir…».
E vou, não ás noites de música africana onde parava a “inteligenzia” lisboeta, dos findos anos oitenta e noventa. Mas quando vou buscar a minha neta ao infantário, para ficar comigo á sexta -feira, pelo caminho paro na esplanada da “Brasileira”, e por ali fico a dançar com ela. O ritmo é de funana , toca um simpático grupo e músicos de Santiago, com dois “guitarras” portuguesas á mistura. São os “guents dy rincon”. Procuram a sua oportunidade ali no meio do Chiado.

É o bocadinho mais feliz que tenho hoje na minha vida, aquele fim de tarde de música e dança.

Hoje, no hospital, ao meu lado, uma mulher gemia em crioulo.

Gemia de dor.
Estava muito doente.
Iria morrer brevemente.

Mas o seu gemido era uma poesia…