quarta-feira, janeiro 18, 2012

O Candidato

Fui catequista na paróquia de Ribeira da Pena durante sessenta anos.
Ensinei a catequese a três gerações, vindas de todas as freguesias em redor.
Com era de uma família de “remediados”, fiquei solteira. Por estes lados só havia gente do campo, gente muito pobre que trabalhava para outrem, e um ou outro lavrador mais abastado, e depois os fidalgos ( os do solar de Santa Marinha, os da Casa da Serra de Cima, os da Casa dos Crespos, os da Casa dos Barroso, e outros por aí espelhados por estas serras), a gente bem os via na missa das onze ao domingo na igreja matriz. Ora, é bom de ver que os pobres não tinham coragem de olhar para mim, casavam lá uns com os outros, os. Os mais riquitos, com alguma coisa de seu, não lhes interessavam uma rapariga sem terras para casar com os filhos, pois casava-se muito para juntar propriedades. Os fidalgos, meu Deus, isso nem pensar! Pois, se eram fidalgos…! Casavam com parentes que vinham de Lisboa ou do Porto, tudo gente da mesma laia. Bem, eu é que não tinha por aqui ninguém da minha laia. Meu pai veio para aqui como professor primário, era de Mondim de Basto. A minha mãe era da terra, mas de rica tinha pouco. Os meus avós tinham uns campos, mas coisa pouca, e depois ela teve que dividir aquilo com uns primos, não ficou nada. Mas não éramos “gente do campo”, não senhora. No tempo em que meu pai era professor , vivíamos benzinho com o ordenado dele. Depois da morte dele, ficámos a modos que numa pobreza envergonhada. A costura da minha Mãe não dava para o sustento. Foi então que o senhor Abade me chamou para dar a catequese, e pagava-me qualquer coisinha, louvado seja, pois nem era dado receber-se nada. Tinha eu dezanove anos. E foi aí que me dediquei ás crianças. Eles, coitadinhos, apegavam-se muito a mim. E os pais?! Se gostavam de mim! Que a D. Elvira( que entretanto ficou entrevada) era muito rude com eles, que os cachopos fugiam a sete pés da catequese, que eu tinha outro jeito para os cativar…Até mos mandavam de Boticas, vejam lá …
Oh, meu Deus, a quantidade de catraios a quem dei a catequese. Foi aos pais, aos filhos e aos netos!
Mas nesses tempos era tudo bem diferente do que é hoje! Se não era! Chegavam-me aqui crianças descalças, esfomeadas, com as caras enfarruscadas de terra, a roupita rota, cheiinhos de frio. A minha mãe (que já lá está), lavava-os com água aquecida no panelão, e consolava-os com pão branco, e eles ficavam regaladinhos, (em casa só conheciam a broa de milho, que as mães faziam bem amarga, para que não comessem muita). Como a maioria nem a terceira classe fazia, ainda lhes ensinava as letras. Os pais precisavam daqueles bracinhos para os ajudar nos campos!
Mas a primeira comunhão era sagrada, tinham que a fazer! A comunhão solene, essa era só para alguns. Exigia roupa apropriada, era um luxo …
Muitos foram-se daqui para fora. A maioria ia para o Porto, para marçano de mercearia. Outros iam para a tropa e depois não voltavam, ficavam-se por outras terras.
Na guerra em África, ficaram-me lá quatro. Quatro dos meus meninos! Com dezanove e vinte anos, na flor da juventude, meus queridos!
Já lá vai tanto tempo! Mas nunca os esqueço á noite nas minhas orações.
Ás vezes, quando vou para a janela á tardinha, vejo passar o filho do Albino da barbearia, que morreu na Guiné, e penso: «Meus Deus, como este é bem mais velho que o pai!»
Mas de todos o mais esperto que conheci foi o Zeca.
O pai, o Quim caseiro da Casa do Outeiro, apareceu-me aqui um dia com o rapaz:
«Oh D. Lurdinhas, veja se o catraio faz a comunhão. Olhe, se ele não aprender como vossemecê quer, arreie-lhe com o pão de marmeleiro. Dê-lhe! dê-lhe, que é o que os cachopos precisam!»
Grande besta, aquele Quim! Em casa dele havia cenas constantes com pancadaria na mulher. Ao outro dia, a desgraçada, cheia de vergonha escondia as negras da cara com o lenço da cabeça. Eu cheguei a ir falar com o D. Ignácio do Outeiro, que intercedesse pela aquela mulher e aquelas crianças, pois vivam dentro dos seus muros.
«Oh D. Lurdinhas, não se apoquente, foi sempre assim naquela casa, já os avós do Quim eram caseiros do meu avô, e aconteciam as mesmas cenas. Sabe, é de lidarem todo o dia só com animais, depois ficam iguais a eles.»
Grande animal é o que tu és, pensei eu com os meus botões. Sempre enfiados na igreja, e não sabiam o que era caridade! Uns trastes! Eles é que precisavam de um pau de marmeleiro, “os” do Outeiro!
Preparei o Zeca para a comunhão. E se aprendia bem, o rapaz! O mestre da escola dizia o mesmo, e que era mesmo uma peninha que aquele moço ficasse só com a terceira classe. Pois…, mas convencer o bruto do Quim para o filho continuar na escola?! Que os outros sete ainda eram muito pequenos, ainda não ajudavam em nada, que não podia cultivar as terras e cuidar de animais, tudo sozinho…Era sempre a resposta dele. Fui falar com o Sr. Abade Joãozinho, para que me ajudasse, que o rapaz merecia uma oportunidade. Enfim, sempre era o Abade da nossa terra, tão respeitado pelas gentes de todo lado, e tanto por fidalgos como por gente dos campos.
O Zeca lá fez a quarta classe.
E voltou para os campos, a carregar seixos de erva ás costas, a levar o gado a pastar, a rachar lenha, a ordenhar as vacas, etc.
Eu não me conformava com aquilo. Aos domingos, depois da missa das sete, que era a missa dos pobres, (a dos ricos e fidalgos era ás onze, eu a minha Mãezinha como éramos “remediadas” tanto íamos a uma com a outra), a rapaziada ficava no adro a jogar á malha. Pois nem isso o patife do Quim permitia. A gente bem lhe pedia, mas que não senhora, direitinho para casa, havia muito que fazer, nem que não fosse cuidar dos irmãos mais novos, para deixar a mãe livre para outras tarefas.
Pois então eu impus-me. Disse ao Quim que precisava muito que o rapaz nos ajudasse, pois a minha Mãe estava doente, e a seguir a missa trazia-o para nossa casa. Tudo mentira! Ele ficava ler uns livrinhos que a gente tinha para aí. Estou a vê-lo, sossegadinho ali no canto da saleta, depois de a gente lhe dar uma caneca de café com leite, agarrado ao Júlio Dinis, ao Guerra Junqueiro, e mais a umas vidas de santos e bíblias que tínhamos herdado de umas primas. Via-se mesmo que o moço gostava das letras, que era “dotadinho” para os estudos!
Pois não larguei o Abade Joãozinho até concretizarmos o nosso projecto. Conseguimos que ele fosse para o orfanato dos rapazes de Vila Real, onde os preparavam até ao quinto ano. Ele lá família tinha, mas o Abade Joãozinho trabalhou bem o caso com os padres de lá.
Eu ia visitá-lo na “carreira” ao domingo. Ele andava muito tristinho, tinha muitas saudades dos irmãos mais novos. Vinha a casa pelo Natal e uns tempos no Verão. O pai quando o apanhava punha-o logo a trabalhar. Mas aguentou os cinco anos, sem nunca lhe ver uma lágrima, e sempre agarradinho aos livros.
Pois não é que o meu Zeca foi fazer o exame ao liceu, e ficou “dispensado das orais” tanto em letras como em ciências!
O liceu de Vila Real nesse tempo só leccionava até ao quinto ano. Os rapazes do orfanato ou iam para o seminário, ou ficavam por ali a trabalhar. A D. Eugénia Sofia, sogra do senhor D. Ignácio, propôs ao senhor Abade pagar-lhe o seminário. Achava a velha que teria assim o Céu garantido! Mas o Zeca sabia bem o que queria, e não queria ir para padre.
Depois de cinco anos longe da Casa do Outeiro, voltou para as lides do campo.
Quando o via ao longe a avançar para a serra com o rebanho, fazia-me dó.
Sempre que podia, vinha bater-nos á porta. Aqui tinha sempre o seu cantinho de leituras. Nunca gostou de ir “ver a bola” para o café, como os outros.
Ele era diferente!
Em meados de Setembro desse ano, apareceu-me muito contente, muito prazenteiro. Com um sorriso de felicidade que não conseguia disfarçar. Parece que andava sobre nuvens. Eu perguntei-lhe porque andava tão satisfeito. Que andava “a falar para” uma moça. Tinha-a conhecido na romaria da Nossa Senhora da Pena. Mas não podia dizer o nome.
Sem saber porquê, fiquei um bocadinho preocupada.
Pois, e era de ficar! A tal “moça”, era uma menina sobrinha dos fidalgos. Era de Lisboa. Franzininha, vinha “a ares” para a aldeia.
O D. Ignácio entrou pela cozinha adentro dos caseiros, e, aos gritos exigiu que o Zeca saísse de casa imediatamente, não o queria mais ver, depois de tamanho descaramento. A “franzininha” já tinha sido recambiada para Lisboa.
A Deolinda veio ter comigo, que eu a ajudasse, chorava como uma Madalena, que não sabia o que havia de fazer, que ter que pôr o filho fora de casa era arrancarem-lhe o coração.
Não foi preciso, o Zeca desapareceu nesse mesmo dia.
Passaram-se oito dias, quinze dias, e o do Zeca ninguém sabia. O senhor Abade usou dos seus conhecimentos para pôr a policia a procurá-lo, até a P.I.D.E o procurou. Mas nada. E o Abade Joãozinho dizia-me,
« Ai, menina Lurdes, se ele foi para Espanha nunca mais o encontramos. Até falei com o governador civil de Vila Real, ele diz que accionou conhecimentos em Lisboa, que está tudo apostes a procurarem o Zeca. Que hei-de mais fazer, falar mais com quem?! O rapaz sumiu-se mesmo. Ai se ele foi para Espanha!»
Eu chorava, e rezava, chorava e rezava. Só tinha calma quando a Deolinda vinha falar comigo.
«Tenha fé, o nosso Zeca está bem. Ele é muito esperto. Sabe desenrascar-se. Vamos rezar, rezar muito para que Nossa Senhora nos atenda. E o Quim que quebre, diabo do homem, e também reze para que o filho apareça».
«Esse malvado, arrenego-o eu! A culpa também é dele, excomungado, só sabia atirar-lhe com o que tinha á mão, nunca se dirigiu ao rapaz sem ser a blasfemar!».
Estou a vê-la, aqui á porta da minha cozinha, ainda a dar de mamar á Deolindinha.
No lugar dos olhos, tinha dois pontos vermelhos…
Passado uns dois meses, uma manhã chega-me o carteiro, muito curioso, que eu tinha carta de Lisboa…
Bendito dia aquele!
Era do nosso Zeca…Que estava bem, trabalhava numa mercearia aos recados, e o patrão deixava-o dormir numa arrecadação. Que era bom para ele, dava-lhe alguma comida que sobrava de sua casa. Que pedisse a bênção á mãe e que ela o desculpasse de ter abalado sem dizer nada. Mas não poderia ter sido de outro modo. Que eu a sossegasse. Que desse saudades aos irmãos. Prometia que um dia havia de voltar.
Depois passou-se muito tempo, não me lembro bem, talvez uns dois anos e nada de cartas do Zeca.
Deu-se o 25 de Abril. Depois começou a haver por aqui muito falatório de quem eram os maus e os bons. E vieram-me dizer, que, no café do Abel, falava-se á mão cheia que o Zeca era comunista, estava do lado dos maus. Pois eu, que gostava pouco de entrar no café, quanto mais á tarde que só tinha homens, pus-me a caminho, cheguei lá e disse para quem quis ouvir:
«Ficai sabendo, que eu não percebo nada de politica, sei lá quem são os comunistas e os bons…Mas dou-vos a minha palavra, onde o Zeca estiver, só pode ser do lado dos bons. Raios vos partam com estes paleios! Ouvistes bem o que eu vos disse?! Então não esqueceis, para eu não tornar a vir aqui outra vez, já não tenho idade para isto!»
Ouviram e calaram!
Por esse Natal, recebi um postal muito lindo, cheio de pozinhos prateados, era o Zeca a dizer que andava a estudar á noite, que bem mais cedo do que se pensasse, havia de aparecer.
E assim foi, depois de cinco anos nos ter deixado naquele aflição, apareceu em Ribeira da Pena.
Apresentou a mulher, uma rapariga jeitosa, que tinha sido colega de Direito. Notava-se que eram cúmplices, entendiam-se com o olhar. Trabalhavam num Ministério, não sei já o quê.
Tinha saído daqui escorraçado, humilhado, só no mundo.
Chegou um homem realizado, feliz, ao lado da companheira.
Ficaram em minha casa. Poucos dias se demoraram. Foi matar saudades da mãe e dos irmãos, pegou nos dois rapazes mais novos e levou-os com ele. Pouco se importou com os gritos do pai.
Bendito seja o meu Zeca, já lá vão uns vinte anos? ou mais?, não sei…
Aqui há tempos, no Centro de Saúde, disseram-me que o Zeca era presidente de um partido. Que vinha tudo no telejornal. Nem liguei á conversa daquelas velhas…

Mas hoje, meu Deus, hoje domingo, dia de eleições, agradeço-Te teres-me dado estas ricas pernas até á idade dos oitenta e três anos, para ir a pé até á Junta de Freguesia, votar no meu Zeca para primeiro- ministro!