terça-feira, janeiro 18, 2011

A ALMA DOS REMEDIADOS

CRÓNICA TRÊS

"GEMER EM CRIOULO"

Hoje, no Hospital STª Maria, ao meu lado, na sala de espera, uma mulher gemia em crioulo.

Com a cabeça atada com um lenço colorido, escondendo os estragos da quimioterapia, vestia um pano africano com cores que agrediam a manhã de rigoroso inverno, sem meias, contrastando com fileiras de senhoras que, de calças e botas, sacudiam a chuva das gabardines e casacos compridos.

Hoje, no hospital, ao meu lado, uma mulher gemia em crioulo.

Num doce crioulo ao som do qual eu descobri as mornas no principio dos anos oitenta, na voz do Bana, no «Monte Cara».

Ao seu lado, uma jovem, que tentava que fossem atendidas no gabinete dos cuidados paliativos.
A mulher, torcida de dores, tentava acomodar-se meia estendida em duas cadeiras geminadas, de plástico moldado para assento, duras como pedras, ironicamente verdes alface.
Como se naquele lugar ligado á dor e á morte, algo pudesse inspirar frescura.
A mulher gemia baixinho, e dizia, na sua dor, palavras com um som lindíssimo, musicais, que eu não percebia o significado.
Como a jovem acompanhante demorasse á porta do gabinete médico, toquei-lhe no braço e perguntei-lhe se precisava de alguma coisa. Olhando-me com uns olhos enormes, continuou a gemer num misto de doçura e sofrimento.
A única cumplicidade que eu podia ter para com ela, era olha-la enquanto ela me olhava, e gemia em crioulo.
A jovem chegou, perguntei se era filha, se precisava de alguma coisa.
Que não, muito obrigado, com os mesmos olhos doces cravejados de lágrimas, que “era muito complicado”.
Era o que ela achava conveniente dizer daquele caso de doença extrema:
“Era muito complicado”!

A sogra tinha muitas dores, estava sempre a gemer em casa.
«Quer ir morrer para Cabo Verde. Para casa. Se tivesse vindo para Lisboa logo, quando o tumor apareceu... Assim “era muito complicado”....Mas lá em Cabo Verde não há hospital como aqui, há muito médico, mas é particular, é muito cara operação, vêem sempre a Lisboa, ou França ou Holanda, lá é muito dinheiro....Mas para vir, “eles” têm que dar papeis e demoram muito, demorou muito para ela, agora é muito complicado, médico diz que não pode operar, não pode fazer nada. Ela quer ir embora, tem lá dez filhos, quer ir morrer lá. Está á espera do filho que está na França, o meu marido, que vai levar ela para Cabo Verde, mas só pode vir daqui a um mês. Sei não, é muito complicado, não sei se a morte dela vai esperar...era bom era, que a morte esperasse, para ela ir morrer lá…»

Hoje no hospital, ao meu lado, uma mulher gemia em crioulo.

O crioulo das “coladeras” e do “ funana”ao som dos quais eu tanto dancei na noites da “ Lontra” e mais tarde no “Ritz Club”.
Quando para mim as noites acabavam ás cinco e meia da manhã e seguiam-se pequenos- almoços de “cachupa” em casa da “tia Zézé”, esmerada cozinheira cabo-verdiana que recebia na sua casa, um segundo andar da Conde Barão.
No Verão, aí se juntavam muitos cabo-verdeanos vindos de férias de vários países da Europa.
Riam e bebiam cerveja com “o branco” vindo da Lontra. “O branco jornalista”, como eles chamavam á fauna de intelectuais bêbados que tropeçavam por ali de madrugada.
Era fascinante ouvi-los no seu gesticular elegante, na sua fala melodiosa!

O crioulo em que me delicio ouvindo as mornas de Cesária, nas noites solitárias na minha sala...
O crioulo do Tito Paris, ao som do qual me diverti, ainda há poucos anos, no inesquecível Beleza.
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Hoje, no hospital, ao meu lado, uma mulher gemia em crioulo.

No mesmo crioulo em que a “minha” Francisca, oriunda da ilha do Sal, me irrompe pela casa ás terças-feiras de manhã, acende a telefonia na rádio África, e exclama num tom tão alegre, quase infantil:
«Então, D. Manuela, agora que está mesmo boazinha de saúde é tem que ir dançar, e não diga que não vai não, agora é que senhora tem que ir…».
E vou, não ás noites de música africana onde parava a “inteligenzia” lisboeta, dos findos anos oitenta e noventa. Mas quando vou buscar a minha neta ao infantário, para ficar comigo á sexta -feira, pelo caminho paro na esplanada da “Brasileira”, e por ali fico a dançar com ela. O ritmo é de funana , toca um simpático grupo e músicos de Santiago, com dois “guitarras” portuguesas á mistura. São os “guents dy rincon”. Procuram a sua oportunidade ali no meio do Chiado.

É o bocadinho mais feliz que tenho hoje na minha vida, aquele fim de tarde de música e dança.

Hoje, no hospital, ao meu lado, uma mulher gemia em crioulo.

Gemia de dor.
Estava muito doente.
Iria morrer brevemente.

Mas o seu gemido era uma poesia…

1 comentário:

Anónimo disse...

é de facto inesperado quando o crioulo é para a Dor mas o que gostava mesmo é que não parasse de contar histórias. estou a gostar muito do blog, Manuela.
Um abraço

Catarina Miranda