terça-feira, janeiro 18, 2011

A ALMA DOS REMEDIADOS

CRÒNICA DOIS



“ A AMANTE DE ALFAMA”



A rua das Canastras, travessa estreita ladeada pelo “Arco das Portas do Mar” e pelo «Arco Escuro”, fica junto á Sé. Dali para a frente começa o bairro de Alfama.
Sendo as casas todas pós terramoto, algumas com 200 anos, a câmara vai lentamente fazendo obras de restauro. Há permanentemente contentores de lixo, cheios de bocados de estuque, pedaços de madeira, azulejos etc. então, em frente a casa do sr. Armando que habita o rés do chão do nº1, É já habitual permanecer um contentor para o que der e vier, que está sempre cheio.
A rua, habitada exclusivamente por idosos, há uns anos para cá vai ficando deserta de gente. Uns foram para a “terra” acabar os seus dias, outros morreram, e os filhos nem falar-lhes em viver naquelas casa velhas, querem a sua casinha em Rio de Mouro ou no Barreiro. Tudo isto para regozijo dos proprietários, que deixam os prédios vazios, sonhando com um futuro dourado daquela zona á beira-rio.
O Armando já há uns anos que anda a proclamar para vizinha da janela em frente,
« para Agosto vamos para a aldeia e não voltamos». Mas em Setembro voltam sempre. É todos os anos a mesma coisa.
A mulher, a senhora Elvira, sempre com a sua voz delicodoce, é enjoativa de tanta simpatia e salamaleques.
«Então, minha querida senhora, anda melhorzinha? agora parece-me mais cheiinha, gosto mais de a ver assim. E a netinha? Deve parecer um anjinho!»
«Está tudo bem, obrigado, e vocês?»
« nós estamos mortinhos por ir para a terra. Mas o meu Armando tem sempre uns trabalhinhos pendentes.... agora aqui é só chineses e indianos, (fazendo um gesto que abrangia o bairro da sé, baixa e tudo mais) e isto já não interessa a ninguém. e temos lá uma casinha que é um mimo. Muito gostava que a senhora lá fosse...vamos lá ver...»
E a conversa nunca mais acaba. Quando vou na rua e a vejo á janela, tenho que fugir.
Uma bela manhã de Junho, o sr. Armando proclama da seu “púlpito”
«é para o próximo mês, já avisamos o senhorio, vamos de vez para o nosso sossego, já cá andamos 50 anos a trabalhar no duro, chegou a nossa hora!»
Passados dias, á noitinha, no meio do “meu” telejornal das nove, ouço grande gritaria vinda da rua, corro para a varanda. o sr. Armando no meio da rua num discurso bem alto, « já te disse para não pores mais aqui os pés, deixa-te lá ficar na Rua dos Remédios, “sua puta d, Alfama”, não te venhas meter aqui na mina vida, eu vou para onde eu quiser! mas que grande porra, esta puta só gosta de me moer a cabeça!
E uma velha, com setenta e muitos anos, com o cabelo metade oxigenado, metade branco, uma chinela no pé e outra na mão como arma de arremesso, gritava-lhe,
« cabrão, julgas que ao fim destes anos todos me deixas, cabrão de merda, vai para a tua terra, vai, que eu hei-de pôr-te os cornos até ao último dia da minha vida!»
Depois deste diálogo eloquente, o Sr. Armando pega na mulher e enfia no contentor, empurrando-a para baixo, cobrindo-a de bocados de tapume e cacos de telhas. E ninguém, ninguém mesmo, nem um cão se via na rua. Das janelas viam-se dedos a entreabrir as cortininhas de nylon branco. Haviam olhos á espreita, mas as cabeças não se mostravam. A única espectadora frontal era eu, do cimo da minha varanda num quarto andar. De início até estava entretida a ouvir o diálogo daqueles dois, mas quando a mulher é “enterrada viva”, desato aos gritos,
«socorro, acudam».
O Armando vai para casa com ar tranquilo sacudindo as mãos, e muito calmamente fecha a porta, como tivesse dado por encerrado um assunto pendente há muito tempo.
Bacalhoeiros, em frente á minha varanda das traseiras. Estava a apanhar o fresco da noite em pijama, e disse que não podia fazer nada. Voltei para a varanda donde via o espectáculo. Fiquei Passam-se alguns minutos e começo a ver a cabeça da velha a emergir da lixeira, agora toda cinzenta do lixo e da poeira., ela consegue a muito custo sair cá para fora, e tirando os bocados de estuque da cabeça para poder ver, grita em direcção a casa do Armando,
« cabrão do velho, corno de merda, julgava que me enganava, mas vai para o caixão mais depressa do que vai para terra»
O homem sai de casa, e calmamente, diz,
«se não calas essa boca, eu racho-te ao meio»
A velhota com toda a genica que arranja, ainda responde,
« tu?, “ó frouxo”, nem forças tens para tocar viola!»
Em breves instantes o homem entra em casa e volta a sair, agora com um machado na mão,( eu nunca tinha visto um machado tão grande!, parecia o machado dos anões da Branca de Neve, dos livros ilustrados da minha meninice, onde o machado era imponente comparado com os anões). com um ar determinado, avançando para ela, diz,
« vou-te matar!»
Aí, atravesso a casa a correr, gritando sempre,
«oh Sr. Álvaro, acuda aqui»
O Sr. Álvaro é o presidente da Junta a de freguesia da Sé, e mora na rua dos bacalhoeiros, em frente á minha varanda das traseiras. Estava a apanhar o fresco da noite de tronco nu e calças de pijama, e disse que não podia fazer nada. Voltei para a varanda donde via o espectáculo. Estava rouca de gritar “socorro”. O cão do vizinho do Esq. desatou a ladrar-me na varanda ao lado.
E nunca ninguém apareceu! Só as cortinas de terylene” mexiam…
A velha viu que a “coisa estava feia”, ainda a largar muita poeirada, cambaleando sem as chinelas, vira-lhe as costas, e já calada segue em direcção a Alfama.
Ele desiste do “homicídio” e mete-se em casa.
Minutos depois, quando o episódio parecia dado como acabado, a Sra. Elvira, abre a janela de par em par (até aí não se tinha notado a sua existência, o marido bem podia ter matado a “outra”…). E tal esposa legítima, embora de vernáculo popular, grita para a velha, que se afastava com esforço,
« grande cabra, que me andas a comer o homem há 40 anos, vai morrer para longe, puta do caralho, que este a quem o padre me uniu, há-de morrer meu marido!»
A rua toda ouviu, e sempre invisível, ficou ainda mais silenciosa.

A ALMA DOS REMEDIADOS

CRÓNICA TRÊS

"GEMER EM CRIOULO"

Hoje, no Hospital STª Maria, ao meu lado, na sala de espera, uma mulher gemia em crioulo.

Com a cabeça atada com um lenço colorido, escondendo os estragos da quimioterapia, vestia um pano africano com cores que agrediam a manhã de rigoroso inverno, sem meias, contrastando com fileiras de senhoras que, de calças e botas, sacudiam a chuva das gabardines e casacos compridos.

Hoje, no hospital, ao meu lado, uma mulher gemia em crioulo.

Num doce crioulo ao som do qual eu descobri as mornas no principio dos anos oitenta, na voz do Bana, no «Monte Cara».

Ao seu lado, uma jovem, que tentava que fossem atendidas no gabinete dos cuidados paliativos.
A mulher, torcida de dores, tentava acomodar-se meia estendida em duas cadeiras geminadas, de plástico moldado para assento, duras como pedras, ironicamente verdes alface.
Como se naquele lugar ligado á dor e á morte, algo pudesse inspirar frescura.
A mulher gemia baixinho, e dizia, na sua dor, palavras com um som lindíssimo, musicais, que eu não percebia o significado.
Como a jovem acompanhante demorasse á porta do gabinete médico, toquei-lhe no braço e perguntei-lhe se precisava de alguma coisa. Olhando-me com uns olhos enormes, continuou a gemer num misto de doçura e sofrimento.
A única cumplicidade que eu podia ter para com ela, era olha-la enquanto ela me olhava, e gemia em crioulo.
A jovem chegou, perguntei se era filha, se precisava de alguma coisa.
Que não, muito obrigado, com os mesmos olhos doces cravejados de lágrimas, que “era muito complicado”.
Era o que ela achava conveniente dizer daquele caso de doença extrema:
“Era muito complicado”!

A sogra tinha muitas dores, estava sempre a gemer em casa.
«Quer ir morrer para Cabo Verde. Para casa. Se tivesse vindo para Lisboa logo, quando o tumor apareceu... Assim “era muito complicado”....Mas lá em Cabo Verde não há hospital como aqui, há muito médico, mas é particular, é muito cara operação, vêem sempre a Lisboa, ou França ou Holanda, lá é muito dinheiro....Mas para vir, “eles” têm que dar papeis e demoram muito, demorou muito para ela, agora é muito complicado, médico diz que não pode operar, não pode fazer nada. Ela quer ir embora, tem lá dez filhos, quer ir morrer lá. Está á espera do filho que está na França, o meu marido, que vai levar ela para Cabo Verde, mas só pode vir daqui a um mês. Sei não, é muito complicado, não sei se a morte dela vai esperar...era bom era, que a morte esperasse, para ela ir morrer lá…»

Hoje no hospital, ao meu lado, uma mulher gemia em crioulo.

O crioulo das “coladeras” e do “ funana”ao som dos quais eu tanto dancei na noites da “ Lontra” e mais tarde no “Ritz Club”.
Quando para mim as noites acabavam ás cinco e meia da manhã e seguiam-se pequenos- almoços de “cachupa” em casa da “tia Zézé”, esmerada cozinheira cabo-verdiana que recebia na sua casa, um segundo andar da Conde Barão.
No Verão, aí se juntavam muitos cabo-verdeanos vindos de férias de vários países da Europa.
Riam e bebiam cerveja com “o branco” vindo da Lontra. “O branco jornalista”, como eles chamavam á fauna de intelectuais bêbados que tropeçavam por ali de madrugada.
Era fascinante ouvi-los no seu gesticular elegante, na sua fala melodiosa!

O crioulo em que me delicio ouvindo as mornas de Cesária, nas noites solitárias na minha sala...
O crioulo do Tito Paris, ao som do qual me diverti, ainda há poucos anos, no inesquecível Beleza.
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Hoje, no hospital, ao meu lado, uma mulher gemia em crioulo.

No mesmo crioulo em que a “minha” Francisca, oriunda da ilha do Sal, me irrompe pela casa ás terças-feiras de manhã, acende a telefonia na rádio África, e exclama num tom tão alegre, quase infantil:
«Então, D. Manuela, agora que está mesmo boazinha de saúde é tem que ir dançar, e não diga que não vai não, agora é que senhora tem que ir…».
E vou, não ás noites de música africana onde parava a “inteligenzia” lisboeta, dos findos anos oitenta e noventa. Mas quando vou buscar a minha neta ao infantário, para ficar comigo á sexta -feira, pelo caminho paro na esplanada da “Brasileira”, e por ali fico a dançar com ela. O ritmo é de funana , toca um simpático grupo e músicos de Santiago, com dois “guitarras” portuguesas á mistura. São os “guents dy rincon”. Procuram a sua oportunidade ali no meio do Chiado.

É o bocadinho mais feliz que tenho hoje na minha vida, aquele fim de tarde de música e dança.

Hoje, no hospital, ao meu lado, uma mulher gemia em crioulo.

Gemia de dor.
Estava muito doente.
Iria morrer brevemente.

Mas o seu gemido era uma poesia…