quarta-feira, outubro 27, 2010

A ALMA DOS REMEDIADOS CRÒNICA UM

MONÓLOGO DE FERNANDA (VENDO NOVELA DA TVI)




Estas gajas são umas velhas e pensam que são novas!
Grandes coirões!

Haviam de ver como eu era jeitosa ainda há coisa de oito anos! Com cinquenta “aninhos”, estava boa como o milho. Até foi quando no escritório onde fazia a limpeza, o engenheiro me apalpou o cu. E eu, (ta bom, ta, não ando cá a perder ocasiões, e logo com um figurão daqueles!), encostei-me bem a ele.
Ainda me apalpou mais três vezes, mas ficou por aí.
Paciência…

Mas é que estas tipas não têm mesmo vergonha nenhuma para andar ali sempre aos beijos aos colegas…

Vá lá os miúdos dos «Morangos Com Açúcar»! Agora aquelas “peruas”!

Será que aquela gaja é casada? É coisinha para já ter uns dois divórcios no bucho. Não deve haver marido que esteja para aturar aquilo.

Só pensam nelas, estas artistas! E ganham bom dinheirinho para andar ali aos beijos ao “marido” e depois ao “ amante”!
Um rico dinheirinho, sim senhor, e tu, Fernanda, para aqui desempregada!

Se tivessem um homem como o meu, chegavam a casa, levavam um enxerto de porrada, para não serem desavergonhadas, e ficavam sem o dinheiro, porque ele ia bebê-lo todinho.

Que grande casa, que linda sala.!. Até parece a da Dr.ª Olga, cheiinha de bugigangas de louça.
Não é que essa puta só me paga cinco euros por hora, e só quer as terças de manhã, para eu “ me haver” com aquela tralha toda!

Foi a fábrica que fechou, depois as limpezas nos escritórios acabaram-se, um foi á falência, outro mudou de mão…, isto está uma desgraça!
Fiquei só com a casa da Dr.ª Olga.
Aquela grande cabra!
No Centro de Saúde, marca toda a gente para as oito da manhã, e depois a “madama” chega ás onze. Claro que a consulta não demora mais que cinco minutos. Nem olha para a cara das pessoas, escreve umas coisas, com a cabeça para baixo e pronto.
Outro dia, a ti Amélia, coitadinha, cheiinha de dores nas pernas, sem poder andar, disse que a mulher teve todo o tempo da consulta ao telefone. A velhota percebeu que era para o Brasil, a marcar hotel para férias.
Pois, telefone de graça…e um bom ordenado que dá para passear…
Os meus pais eram pobres, só fiz a terceira classe. Se eles tivessem sido gente de posses, agora podia estar no lugar daquela “coruja”.
Aquela fulana não tem consciência nenhuma. Um centro de saúde na Alfama, já se sabe que é só de velhotes cheios de maleitas e necessitados.
Se ela visse a miséria que é aquela sala de espera…
Mas a gaja está-se a cagar…

Tem tanta chinesada. Quando começo a lida da casa, a minha vontade é enfiar com as caixinhas de porcelana todas no lixo. A mulher é doida, tem para aí umas cem.

Uma pirosa, uma estúpida, uma sovina!

Ai meu Deus, olha esta matrona loira aos beijos aquele de cabelos brancos, o sujeito até parece que tem espuma de barbear na cabeça!
Onde já se viu!

Nas brasileiras também há disto, mas não é assim. Fazem com graça, são novos, giros. E também ia jurar que não dão tantos beijos como nas telenovelas portuguesas…
Sempre há outro recato!

Bem, e esta quarentona tão ruiva, tão ruiva, (a mulher mais parece um semáforo) que não sai da frente da gente sempre em cuecas e soutien de cetim!
É só disto nas novelas portuguesas, matadoras em cuecas é o que há mais.

Prontos, agora lá vai mais um linguado no puto surfista…
É que esta gente nem olha a idades, ele é velhas com “chavalos”, catraias com “velhadas”… Que grande pouca-vergonha!

Por isso é que este país está como está!

Ai Fernanda, ao tempo que não dás um beijo destes!
Desde o tempo da outra senhora! Se bem me lembro, ainda o Salazar não tinha caído da cadeira.
Não penses Fernanda, que a tua vida não é isto, e daqui a pouco chega o Horácio.
Deve vir bêbado como um cacho, e vai mandar vir se o comer não estiver na mesa.

E o cabrão, quando está mesmo cheiinho de vinho, larga aos pontapés a tudo.

Todos os dias morre gente, só a este gajo não lhe dá uma que o leve para o inferno!

Vá lá, que me vi livre do traste da mãe dele, aquela velha cinzenta, a cheirar aos fumados de cozinha de aldeia.
Veio lá dos confins de Trás- os –Montes só para me moer o juízo!

Custou, mas foi!

Aquela estuporada que me lixou a vida durante trinta anos!
«Ó rapariga, não sejas badalhoca…Ó rapariga, não vês que não sabes fritar alheiras, o meu Horácio não gosta assim…».

Grande cabra, quando o gajo me arreava, ela ia para o quarto, á laia de não dar por nada. O que vale é que também apanhou bem do homem dela.
As que se perderam forma poucas…

Não é que esta gaja se está a atirar ao loirinho que é da idade do meu neto?! Palavra de honra, eu fico parva com o descaramento destas sujeitas!

Bem, vou apagar esta merda, que se faz tarde para ir descascar as batatas para a sopa.

Cá o “banhas” não come sopa de véspera, tem que ser tudo acabadinho de fazer!
E hoje ainda vai dar dois murros na mesa, tão certo como eu me chamar Fernanda. Porquê, não sei, ou porque o chouriço está mal assado, ou ficou esturricado...ou sei lá….
Ele tem cá um jeito para arranjar motivos, o cabrão!

E há uns tempos para cá que anda pior, parece que tem o diabo no corpo.

Dizem que os homens aqui do bairro, andam todos doidos por umas brasileiras que apareceram no café.
Se não fosse os duzentos euros que eu lhe consigo arrancar todos os meses, bem, se não fosse isso, muito gostava que ele fosse para o inferno uma vez por todas, com uma puta de uma brasileira qualquer!
Ai, quem me dera! Era o fim de quarenta anos de “castigos”.

Até já me lembrei de ir a Fátima pedir para me ver livre deste sacana.

Se me apanho a dormir sossegada, sem o gajo a roncar em cima de mim! (parece a antiga sirene da fábrica, a chamar a gente á hora do almoço). E quando lhe dá para se roçar na mina perna?! Ai, cruzes, antes morrer que apanhar com ele em cima!

O que me vale, é que está sempre tão “entornado”, que não chega a lado nenhum.

Mas porque é que lhe não dá um “ataquezinho” do coração e Deus o leve de repente, ainda era o melhor para mim!

É isso mesmo, vou a Fátima com a camioneta da freguesia.
Mas tenho que pedir tudo direitinho!
Não vá Nossa Senhora mandar-lhe um AVC e ainda me fica aqui o homem entrevadinho, com a boca ao lado.
Porra!
Era só o que me faltava!

Então, mas para isso, o melhor será ir a pé, sempre tem mais devoção, mais fé, e assim a Virgem atende melhor!

Vou falar com a Guilhermina que também é do Norte e percebe destas coisas.
Ela vai sempre a pé, a mulher lá sabe porquê…!
Ah, agora é que estou a ligar…, pois é: o homem dela morreu com um ataque fulminante, um enfarte ou lá o que é.
E esse era cá uma bisca….Até um filho fez por fora… Em casa era cada carga de porrada!

Ela é que me vai orientar nesta coisa.

O Horácio precisa de uma morta “limpinha”!

Ai, ai, Fernanda, se tu não fazes pela vida, ninguém o faz por ti!

segunda-feira, junho 07, 2010

As Minhas Janelas

Houve um tempo em que a minha janela dava para um jardim, e ao longe viam-se campos de milho, e mais ao longe uma “bouça” com árvores com árvores imensas e diversas. O jardim era escalado em socalcos, uns com relvados, outros com canteiros de flores delineados com buchos , outros de árvores de fruta com laranjeiras pejadas de laranjas azedas, que originavam a tanto apreciada “marmelade”. E no meio, uma capela.

Havia dias, que grupos de pescadores com suas famílias, chegavam de longe, da Póvoa do Varzim, de Viana do Castelo e de outras praias onde, onde á costa deram, diziam, por milagre, depois de uma noite louca no mar revolto. Traziam muitas garrafas de azeite, para que se acendessem lamparinas todo ano em agradecimento a Nossa Senhora de Monserrate.

Nós, os “meninos” da casa, gostávamos muito destas incursões. E ouvi-los contar á nossa criada, que os conduzia até á capela, aventuras dramáticas. Havia sempre alguém que tinha sobrevivido a um naufrágio. Depois essa gente lá se ia embora, prometendo voltar para o ano seguinte, e distribuindo rebuçados de mentol de um tostão.

No Verão, ás tardes, vinham outros meninos brincar connosco. Eram mandados para o para o nosso oásis. E ás cinco horas, a “nossa” Geca, (a criada que tomava conta de nós), chamava para o lanche, que era papa maizena colorida com gema de ovo. Mas do que gostávamos mesmo, era de comer a broa de milho ainda quente, saída do forno dos caseiros, cuja tampa era fixada com bosta de boi. Havia um cheiro a terra molhada nesses fins de tardes de Verão, enquanto os bois davam á “nora,” e os campos ficavam bordados a regos de água.

Nesse tempo não desconfiava de nada.



Houve um tempo em que a minha janela era muito alta. E não era a “minha” janela. Eram as janelas de um internato de Doroteias

E era proibido aproximar-se das janelas.

E lá dentro era o silêncio. Por vezes cortado por a passagem de uma freira pelo longo corredor, fazendo tilintar o rosário com o crucifixo dependurados ao pescoço.

E depois outra vez o silêncio.

E a missa da manhã, e as aulas, e o refeitório. Tudo em silêncio.

Às duas da tarde, soava o grito de vida das meninas, na meia hora de recreio.

Depois voltava o silêncio, as horas de estudo, o terço e bênção, as orações da noite.

Até ao sepulcral silêncio do dormitório.

Havia meninas que iam a casa de quinze em quinze dias. Mas as que os pais eram de longe, da província, era muito raro irem. E isso magoava-me a alma. Essas, tinham “enchidos” escondidos nas malas, pois era proibido ter comida vinda de casa. Fazíamos incursões á sala de arrumação das malas, para elas matarem saudades da “terra”.

Depois havia castigos para elas e para as cúmplices. Que eram a ausência do recreio.

O total silêncio todo o dia.

Havia ainda, as que os pais estavam em África, a trabalhar muito. Para que elas pudessem andar num colégio tão bom. Para que tivessem uma educação esmerada. Para que pudessem conviver com meninas “finas”.

Essas nunca iam a casa.

No dia em que começávamos as férias de Verão, virávamos os colchões para arejarem, antes de virmos embora. Já de malas feitas, e os pais na portaria á espera.

E elas ficavam. Até nesse dia, elas ficavam.

Tinham sete, oito ou nove anos.

A infância tinha acabado a meio da infância.

No entanto eu ainda era criança, e ainda

Não desconfiava de nada.



Houve um tempo em que a minha janela dava para o jardim da Gulbenkian.

Tinha vinte e cinco anos e uma filha pequena.

Devido á barulheira dos carros que passavam na Avenida de Berna, as janelas estavam sempre fechadas. Mas atravessávamos a rua com o triciclo, e íamos brincar para o jardim.

Éramos felizes as duas, naquela «casinha pequeninha», como ela dizia.

Um dia recebi um telegrama, do Comando das Forcas Armadas na Guiné.

Dizia: Cumpre-nos o doloroso dever, de informar Vossa Excelência, da morte do capitão miliciano, M…………………………….., comandante da companhia nº ……., sitiada em Enchei-a, pertencente ao comando de batalhão de Bissorã……,

Aí percebi que os trilhos da vida por vezes descarrilam, e então,
Comecei a desconfiar



Agora, neste tempo, a minha janela dá para a Sé de Lisboa e Largo de Santo António.

Daqui vejo, os turistas a correr aos gritos atrás do ladrões, depois de ficarem sem as mochilas.

Os casamentos de Stº. António, e suas noivas com rendas e tules, e diademas de fantasia.

A procissão de Nossa Senhora da Saúde, com as prostitutas do Martim Moniz a cantar, ladeando o andor.

O S. Jorge a cavalo a entrar na Sé, no dia do Corpo de Deus. A missa campal com o Cardeal todo enchapelado. Depois sai, no seu cavalo branco, acompanhado por um homem vestido com malha de fero. Vão em procissão em direcção da baixa.

Tenho outra janela virada a Sul, que se abre sobre a praça do Campo das Cebolas e suas palmeiras.

Depois delas, o Rio.

A doca do Jardim do Tabaco e a magnificência dos seus iates de visitantes reais.

Mais ao fundo, os enormes cargueiros.

Aos fins-de-semana, o rio transforma-se num mar de velas brancas em regata.

Não espero coisa alguma. Vivo um dia de cada vez.

Já não desconfio de nada.

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domingo, junho 06, 2010

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A ALMA DOS REMEDIADOS CRÓNICA QUATRO

"O Octogenário Abandonado"

O Sr. Alfredo Costa, de 88 anos, deu entrada no Hospital de Santa Maria no princípio de Novembro. Diagnóstico: pneumonia.

Ficou na enfermaria 3, na cama 6. Os outros doentes, todos recuperavam de cirurgias. Excepto um homem novo, de trinta e quatro anos, com um cancro, em estado terminal, que só ali permanecia para ter os cuidados paliativos.

Nos primeiros dias Sr. Alfredo, esteve muito mal, com febre altíssima. Não falava, delirava apenas. Ninguém sabia que espécie de doente era aquele, talvez um idoso que ia dali sair sem vida, que foi com certeza o que a sua família pensou quando o deixou lá.

Mas foi melhorando, e logo se começou a ouvir o seu: «Muito obrigadinho», ou «se me faz o obséquio», por qualquer serviço das empregadas ou enfermeiras.

Logo que começou a sentar-se na cama para comer, mesmo sem apetite nenhum, elogiava as refeições, que era tudo «muito gostoso» e «muito asseado».

À hora da visita, avançavam pelos corredores multidões de familiares, com os seus pacotinhos da pastelaria e sacos de plástico de roupa lavada, procurando esta ou aquela enfermaria, perguntando uns aos outros para que corredor haviam de virar. Uns entravam na enfermaria 3, esfusiantes de contentamento ao encontrar finalmente o “seu doente”.

Para o Sr. Alfredo nunca entrou ninguém.

Passaram-se muitos dias, e os familiares dos doentes perceberam que também vinham visitar o doente da cama 6, e ele adquiriu o direito de receber o seu embrulhinho de bolos de arroz e umas peças de fruta. «Não era preciso vossemecês incomodarem-se», ou, «agradeço muito a gentileza», dizia satisfeito.

Há hora da visita, todas as famílias eram a família do Senhor Alfredo.

O doente canceroso, embora com calma e resignado ás suas dores constantes, estava sempre muito irrequieto para lhe subirem ou descerem a cama, procurava constantemente uma posição menos incomoda.

E cortava-lhe a alma, ao Alfredo, quando uma empregada menos paciente respondia aos apelos do jovem homem,

«olha que temos mais que fazer do que estar aqui todo o tempo a dar-te à manivela da cama, sossega homem, vê lá se dormes».

«Como se sossegar e dormir fosse solução para as dores deste desgraçado, grande cabra, ao menos que lhe fale com carinho, mas não, não sabe, devia estar só esfregar o chão e estar sempre caladinha, esta coirona», resmungava entre dentes o Alfredo.

E virando-se para o rapaz: «Você chame sempre por mim para lhe “ajeitar” a cama, mesmo a meio da noite, faça de conta que tem aqui um pai a zelar por si».

E embora se preocupasse com qualquer infortúnio dos outros doentes, não era um homem triste. Pelo contrário, até emprestava uma certa alegria aquele lugar, acordando sempre muito animado, com uma piada nova na ponta da língua para quantos o rodeavam.

De manhã quando vinham fazer as camas, lá começavam as empregadas,

«Então, Sr. Alfredo, a sua namorada? quando o vem ver? ou já arranjou outro? E ele:

«Namoradas, namoradas…, não as provo desde moço! Desde que a minha falecida se foi, já vai para 12 anos, quem cuida de mim é a” minha Fátima”, coitadita, que já tem tanto que bulir! É a casa da patroa onde trabalha como uma moura, das oito da manhã até as seis da tarde, depois ainda tem dois escritórios para limpezas, a lida da casa dela….Ela há-de vir visitar-me, há-de, mas ainda não teve tempo, e agora tem a netinha…, o meu neto Nelson arranjou lá um caso com uma moça e teve uma filhinha, que trouxe para casa para a mãe cuidar».

Deram-lhe alta no dia 20 de Dezembro.

«Ena, que sorte, vai receber os presentes do Pai Natal a casa, o nosso velhote». Ajudaram-no a vestir o fato que tinham deixado nos seus pertences quando entrou no hospital. Talvez a família esperasse a sua morte, era um fato que só usou uma vez, há muitos anos, no casamento de uma neta. Era o fato adequado para se levar no caixão.

Sentado numa cadeira já junto á porta, prontinho para sair, ia dizendo: «Muito obrigadinho pelas vossas gentilezas, desejo que também vão depressa para junto dos vossos».

Estava com ar muito satisfeito, prazenteiro, parecia um noivo à espera da sua noiva. Mas a “coitadita”, (como já toda a gente chamava à sua filha), não apareceu todo o dia. Lá o ajudaram a vestir novamente bata e voltou para a cama.

No dia seguinte, como ninguém o tivesse ido buscar, teve que ficar na cama , embora sem justificação clínica. Para permanecer no hospital, tinha que ocupar a sua cama, e continuar a ser o doente nº6.

Despedia-se com ternura dos companheiros que saíam, como se fossem velhos “companhon de route”. Dava as boas vidas aos novos ocupantes das camas, interessava-se por eles e esforçava-se para que eles se sentissem o melhor possível naquela enfermaria, como se fosse um anfitrião.

_«Então, Sr. Alfredo, você não quer largar as saias da gente? Do que você gosta é de ter estas meninas todas à sua volta!», brincavam as auxiliares.

«Não tenho assim tanta pressa» (disfarçava o velho),

«Eu quero ir bem curado para não dar mais trabalho à minha Fátima, coitadita. Quando entrar em casa, quero ajudá-la com a menina, posso bem tomar conta da minha bisneta.»

Mas houve uma manhã, pouco antes do Natal, que o Sr. Alfredo quando acordou não viu ninguém na cama ao lado. A cama nº 5 estava vazia e feita de lavado, como se nunca ninguém a tivesse ocupado.

Perguntou pelo “rapazito” á enfermeira de serviço, que rispidamente lhe respondeu:«Foi transferido!».

Como quem quer dizer, «mete-te na tua vida, entende o que é para entender, e nada de conversas».

Ele dizia baixinho para si:

« Partiu o meu rapaz, partiu a meio da noite!». E foi até à casa de banho para chorar à vontade.

«Porque não eu em vez dele, que já cá não ando a fazer nada?».

Mas logo se tentou convencer que estava à espera de ir para casa. E mais uma manhã, o grupo das raparigas, com a carga do costume para o Alfredo: «Então, a “coitadita” ainda não veio buscá-lo?».

«Oh senhoras, não vedes que só em transportes ela demora umas duas horas par cá vir! Precisa de arranjar uma folga, como é há-de ter tempo, coitadita! Se a gente morasse na Sé como antigamente, não era isto. Mas quiseram vender a casa e ir para rio de Mouro! É muito longe…, e depois eu nem sei ir lá dar. Mudamos para lá há um ano. Depois de ter morado oitenta anos na freguesia da Sé! Vim da terra com os meus pais aos três anos para a Rua São Joao da Praça. Para um quinto andar, era só chegar á janela e o Tejo era todo meu. E ali fiquei oitenta e cinco anos! Ali casei com a minha falecida, (que Deus tem). Ali tive os meus filhos. Uma vida...»

Nunca se queixou da “sua” Fátima. A culpa era sempre do marido que era um egoísta. Dos filhos que eram uns “calões”. Do lugar de Rio e Mouro, que era no fim do mundo. Dos comboios que andam sempre cheios. Dos autocarros que nunca passavam a horas, etc,etc.

Lá passou o Natal, depois e Ano Novo, e depois o dia dos seus anos, sempre na esperança que a seguir ás Festas (que davam muito trabalho “sua Fátima”, coitadita), o viessem buscar.

Mas não, nunca foram.

O hospital nunca conseguiu comunicar com a família, todas as referências que deixaram eram falsas, telefone e morada.

. O caso especial do Sr. Alfredo deu entrada nos Serviços Jurídicos.

Os médicos, que já lhe tinham estima, tentaram accionar a Rede Especial de Trabalhos Continuados, com a intenção de ele continuar no hospital. Mas nada feito, ele estava curado, não havia razão nenhuma para ficar ali mais seis meses. Estava apto a ir para casa.

Acabou por ser “despejado” da enfermaria nº3, que já era a sua casa. Por intermédio da Segurança Social, foi depositado num lar.

Tudo isto sem nunca a família o ter visitado ou requisitado.

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terça-feira, maio 11, 2010

A ALMA DOS REMEDIADOS CRÓNICA CINCO

Ruben dos telemóveis

Sentado nas escadinhas da Sé como de costume, lá está o popular “Ruben dos telemóveis”, como toda a Rua das Canastras o intitula, (sem eu nunca ter percebido porquê).

Normalmente cantarola uns fados, e diz quem já o ouviu á noite em Alfama, que é um bom cantador. Espreguiçando-se, levanta-se dizendo: «vou andando que a minha vida não é isto!
Prontos, só vou até ao Rossio, e á noite não saio, estou farto de trabalhar á noite, já não tenho idade.
Hoje fico a ver a bola.
Logo há jogo no Sporting com os ingleses, lá tenho eu que ir ver o “bifes” entornados de cerveja!
Já deve estar tudo cheio deles pela Baixa fora, então a esplanada da “Suíça”!».
E eu fiquei a pensar em que trabalharia o Ruben, percebia-se que era um trabalho independente sem horários fixos.
Mas o que é que venderia ele no Rossio?

Á tardinha, encontro a mãe do Ruben, a D. Lurdes, à porta da padaria, onde pára para dar dois dedos de conversa. Chega um homem que se mete num carro ali estacionado.
Exclama ela: «Este malandro é carteirista no eléctrico 28. Estaciona o carro aqui todas as manhãs para ir trabalhar.
Patife, fica com o dinheiro e os pertences das pessoas! São uns canalhas, estes carteiristas!
A senhora já viu o que é uma pessoa ficar sem documentos nem nada?! Então os estrangeiros…veja bem! Já viu o desarranjo que é?».
E eu:

 «Lá isso é, D. Lurdes».

Ela continua a palestra: «Cá o meu Ruben…,
Deus me livre de ficar com o dinheiro dos outros e então os documentos!,
É muito sério, lá isso é.., prontos, arranjou o seu negócio… o que havia de fazer!
Ele chegou a trabalhar para um despachante lá para o Cais Sodré, mas tudo isso acabou….
Mas é uma jóia de moço, (não desfazendo).
Olhe, de todos os que andavam na escola com ele, foi o que deu melhor, nenhum saiu tão bem.
O Vítor, tá bem, que é empregado bancário, mas é um parvalhão que nem fala á gente quando vem cá á rua. Não liga nenhum á mãe dele, que bem precisava, coitadita!
Agora o meu filho!, ainda outro dia me deu um plasma para eu ver as novelas como deve ser!.
O Quim, outro que andava com ele na escola, a vida dele foi só droga e prisão.
 Agora está cá fora, mas é só pele e osso, uma desgraça!
O Zé do Arco Escuro, esse foi só vinho e um maluco por mulheres, já vai na quinta, agora tem uma brasileira mais nova vinte anos…
Há-de ir longe, da raça que elas são! Pois olhe, o meu Ruben só namorou uma vez, foi com a Fátima, a filha do Hermano.
Agora é só putas! (com a sua licença).
Não quer enredos com ninguém, para quê? Pra engravidarem e eu é que tenho que pagar os abortos, como foi com a Fátima!?
Ainda por cima foi com aquele fulano do Barreiro, que diz o Hermano que é rico e lhe pôs uma casa que é um mimo! Pois que seja, mas quem lhe pagou o aborto fui eu».

«Lá isso é D. Lurdes».

«Não senhora, o meu Ruben não tem vícios.
Tem lá o sue negócio…, lá isso tem, mas a vida não está bem pra ninguém!.
Olhe, eu também sei como é, ganhei muito dinheiro quando era peixeira, bons tempos, cheguei a comprar uma casinha na Charneca e tudo.
Mas tudo mudou, e eu sozinha, bem vê…tive que vender a casinha e o ouro que tinha!».

«Lá isso é, D. Lurdes».

Ela continua: «Olhe, o meu filho toda a gente o estima, por alguma coisa é.
Vou-lhe contar uma coisa». E empurrou-me para a porta de sua casa que é pegada á padaria, onde tropecei no gato e fiquei colada á gaiola do periquito.

«Ouça só isto, para ver como ele é educado:
Ontem á noite tocou um telefone e vai o meu Ruben e atende:

Sim, minha Senhora, é do 91xxxxxxx9.
Ah, sim, é a dona deste telemóvel?...
Sim, sim, fui eu que o roubei.. é que eu roubo telemóveis, …pois, como queira,… prontos, sou ladrão de telemóveis!.
Mas ainda bem que falou, pois na pochete que eu trouxe vieram cartões do banco e documentos…
Pois claro, fazem muita diferença…com certeza…
Dê-me a sua morada, que eu mando-lhe tudo isso por correio azul…
Bem, claro que sou ladrão..,Senhora D. Mafalda…, como sei o seu nome?...estou a olhar para o seu BI.
Se quiser falar com a polícia, fale, mas eu não quero nada que é seu.
A polícia não me pode encontrar, não vou atender mais este telefone.
E como está a bateria a acabar-se, agradecia que aproveitasse a ocasião para me dar a sua morada….
Bem, o telemóvel…isso não lho posso dar, é o meu trabalho, compreenda!...
Claro, faz favor de dizer, Mafalda Almeida e Cunha, rua Tristão Vaz, nº xx, Restelo, claro, claro…

Vai daí, foi ele mesmo hoje ao correio, com este calor, veja bem, coitadito, e manda tudo á senhora.
Olhe, minha senhora, filho como o meu não há,
Deus lhe tivesse dado assim um, não desfazendo, é claro.)

«Lá isso é D. Lurdes.»

Companheira Solidão

São 18h de uma sexta-feira do mês de Novembro, na baixa pombalina.
Na rua o frio começa a cortar.
Há muito movimento, toda a gente foge.
Fogem em direcção a casa, ao quentinho, ao aconchego. (Até já me começa a cheirar à quadra natalícia.)

 
Correm para os transportes públicos como se estes fossem todos acabar hoje. Desejando-se bom fim-de-semana, atropelam-se nas esquinas.

 
Encavalitam-se nos eléctricos.

 
Arfando de contentamento, entalam-se nas portas do metropolitano.

 
Indiferentes á beleza do cais das Colunas, atravessam correndo o Terreiro do Paço, amontoando-se nos barcos, que, carregados, ondulam o rio.

 
Nada os detém, são 18h de uma sexta- feira!

 
As ruas da baixa começam a ficar desertas, a de S. Julião, a da Conceição, a de S. Nicolau e por aí fora.

Há quase uma hora que as cadeiras nos cafés repousam e pernas para o ar em cima das mesas, e rios de água empurrados a esfregona, desembocam nos passeios.

Na porta dos estabelecimentos, vão aumentando as tabuletas dizendo “Encerrado”.

São dezoito horas de uma sexta-feira, e na baixa pombalina já só restam os pombos!

 
Eu atravesso devagar aquele bairro, no sentido contrário do resto do mundo..., eu moro para os lados da Sé, no fim dos fins da baixa!

Eu vou para casa, “eles” vão para o lar...

Eu vou fechar-me no meu espaço vazio, “eles” vão para junto das suas famílias!

Entro em casa e vem logo o vício de ir buscar o pivot da televisão para companhia, uma voz que corte o silêncio.
E a ilusão de que com o gesto mágico e carregar no botão do aparelho, o mundo me enche a sala.

 
O homem no ecrã fala de engarrafamentos de trânsito, o tabuleiro da ponte para cá, a segunda circular para lá..., (e fico sempre curiosa de qual será a primeira circular.
Tem que haver uma primeira para se engarrafarem todos na segunda!).

 
Enfim, só se fala da pressa “deles” a fugirem para o seu cantinho, “dos” que fogem da baixa, “dos” que fogem de mim... E eu fujo da sala!

 
Vou para o quarto, sento-me ao computador, procuro os emails ( a angustia pergunta: quem comunicou?). Há imensos impessoais, daqueles que se encaminham mecanicamente para todos os contactos. Extraídos de frases dos livros de Paulo Coelho e outros sucedâneos, todos de temática “auto ajuda”. Há uma excepção, a de um convite para fazer um “workshop” de “souflés”, no hotel não sei quê..., não reparei bem, mas tinha no me de sabonete, três dias, preço 300 euros, por acaso reparei!

 
Não, não quero ler nada!

 
Abro uma página em branco, começo por escrever SOLIDÃO....

 
E deixei de me sentir só.

 

terça-feira, maio 04, 2010

A MINHA VIDA DEPOIS DE TI...


Sim, a minha vida depois de ti, do que foi antes de ti não me lembro. Depois chegaste tu! Foi uma vida...Temporariamente curta. Mas foi uma vida!

Depois aquela dor terrível que me doía no sítio mais sensível da minha alma...Vivi com ela muito, muito tempo... A dor atenuou...



Depois de te perder, muito depois, perdi essa dor. Depois da tempestade, fiquei sozinha, sem ti e sem a dor. Chegou a calmia. Habituei-me a viver só comigo. Tenho os meus anti-depressivos, os meus cigarros, a minha sala e o meu rio. E os meus livros de poesia, que por vezes me atraiçoam! Por acidente no meio dum poema encontro-te a ti. Mas depressa és posto no teu lugar. Arquivo-te logo no ficheiro da minha vida. Coloco-te no álbum da minha alma.



Estou-me habituando a mim. E quase que gosto da vida que tenho. Durante algum tempo tentei distrair-me. Passei horas até à exaustão sorvendo sequiosamente, numa secura aflita, o que de mais sórdido, mais cinzento, de mais agressivo me ofereciam os recantos da noite de Lisboa. Passei noites acordada e dias a dormir. Não comia. Só qualquer coisa quando me levantava, simplesmente porque não aguentava fumar em jejum. Abusei do meu corpo sem qualquer respeito. Não fui feliz nem fiquei satisfeita.

Os homens de quem gostei não queriam de mim o que eu queria deles, ou queriam de mim o que eu não queria deles. Foi assim que fiquei sozinha. Mas tentei, a sério que tentei qualquer coisa. Não sei bem o quê, mas sei que foi da maneira errada.

Agora, mesmo que quisesse recomeçar não tinha coragem, nem paciência, não, não tinha mesmo vontade.



Tenho mais alguns anos diante de mim e depois quero acabar de repente. Não sei se valeu a pena, mas também não me pergunto se valeu a pena. Há muitas coisas assim...

Agora há dias em que aceito que o tempo passe por mim e me leve para onde só ele sabe. Nada disto é desistir da vida, é só não dar importância a coisas que não a têm. E afinal será a vida o centro de tudo?



Gosto da vista da minha janela às sete da manhã, com os primeiros cacilheiros a atravessar o rio e o azul do céu cor de tinta da china, e do rio a brilhar como prata polida. Gosto de ir ao cinema ao Domingo á tarde. Sinto-ma tão bem sozinha no escuro da sala, a ver um filme que por vezes me enche um bocadinho a alma! Gosto de ler e reler Fernando Pessoa. Passear-me pelo Terreiro do Paço vazio ao fim de semana, sentar-me a olhar o rio no Cais das Colunas. Gosto de beber a bica no Martinho da Arcada, e pensar que ele, o Poeta, também por ali andou. De que gosto mais? Das tempestades de Inverno, e acordar com a chuva a dar nas janelas, e observar as palmeiras do Campo das Cebolas vergando-se chicoteadas pelo vento, sozinhas na noite, abandonadas á sua sorte sem o turbilhão de gentes, carros e autocarros que as rodeiam durante o dia.



Não espero encontrar ninguém, prezo demasiado a minha melancolia. Não tenho saudades de ninguém, só de alguns sítios da minha infância. Vivo, é já bastante. Não vou dar a lado nenhum, mas isso já tu sabias. Sim, meu amor, é esta a vida que levo. Raramente penso em ti como agora.



À tua memória, a ti, que há muito tempo não fazes parte desta vida, e já há algum tempo da minha, bebo este último gole de tinto. Vou-me deitar.

segunda-feira, abril 26, 2010

Noites de Verão

Tinha chovido torrencialmente todo o dia, agora era a calmia de uma noite de Verão africana.
Sentada á porta de um pequeno barracão que funcionava como messe de oficiais, eu entretinha-me a olhar o céu, beber cerveja e comer amendoins, servida pelo soldado que era o criado de mesa. Tinha passado a tarde a ler no quarto, e o espectáculo daquela noite era redentor. Ao olhar aquele céu, esquecia-me que vivia dentro de arame farpado. Que havia guerra a poucos quilómetros. Que há oito noites atrás tinham caído “morteiros oitenta e um” dentro da companhia. Que tinha morrido um soldado que descansadamente ouvia radio na sua hora de descanso, deitado na camarata.
Que a cinco minutos de jeep dali, havia uma aldeia que visitávamos em passeio ao fim do dia, onde as crianças á porta das tabancas mostravam as suas barrigas inchadas de fome, só alimentadas por uma tigela de arroz por dia.
O Matos, o soldado, entretinha-se a servir-me, pois não havia mais nada para fazer.

Encontrava-me numa companhia do exército português, um aquartelamento junto ao rio Encheia, na ex província portuguesa da Guiné.


O soldado que me servia, era completamente fã do comandante da companhia que, aliás, era o meu marido. Um miliciano “apanhado” para capitão, como acontecia a muitos naqueles tempos da guerra colonial.


Na noite anterior o comandante tinha saído para o mato com um grupo de homens. Senti-os partirem por volta das duas horas da manhã. Não tinham objectivo certo, era apenas uma operação de «reconhecimento de zona». Tinham ido a dez quilómetros para leste, onde só existia mato, apenas mato. Nenhuma aldeia próxima. Esperavam encontrar “vestígios” de turras. Mas nada! Apenas encontraram um jovem de doze ou treze anos de idade, sozinho naquelas redondezas.
Ouvi-os chegar ao entardecer. Um grande alvoroço! Vozes e risos.


O Matos pôs-me ao par do que tinha acontecido. O jovem foi apanhado para informar se havia algum acampamento do P.A.I.G.C. na zona.


Estou sentada á porta da messe, em frente ao gabinete do capitão que fica do outro lado da parada. O rapaz é trazido por um soldado que o agarra pelos cabelos. O Matos ri-se e diz-me: «o gaixo vai xer interrogado». O coração aperta-se-me. Queria poder correr pelo aquartelamento fora, passar os sentinelas e fugir não sei para onde. Para o meio do mato, era a única hipótese…


O tempo vai passando e aquele “gaixo”, como diz o Matos, continua dentro do gabinete do comandante. O “gaixo”, não é senão uma criança de doze anos, que teve o azar de estar numa zona ainda controlada pelo o exército português. Entretanto o Matos vai-se divertindo pensando no “gaixo lá dentro. «Ai não que não dixes», diz ele com a sua pronúncia transmontana, «agora vais dixer onde estão aqueles filhos da mãe e nosso capitão amanhã já lhes trata da saúde». Mas para ele, o mais emocionante foi quando do gabinete do capitão, saiu um soldado que voltou com um cinturão na mão. «Agora vai apanhar até dizer mesmo todinho». E ria-se muito com esta cena do cinturão.


Aquele rapazinho deve ter confessado tudo o que sabia e o que não sabia sobre o hipotético acampamento do “inimigo”. O comandante saiu do gabinete satisfeito. Objectivo conseguido! Havia dados concretos sobre um acampamento “turra” não muito longe dali.


O negrinho sabia bem o que esperava no dia seguinte. Ir com um grupo de portugueses indicar o lugar onde estavam os combatentes. Talvez fosse a sua condenação á morte. Já tinha acontecido a outros “informadores”.


Partiram no dia seguinte, outra vez ás duas da manhã, com o rapaz a indicar o caminho. Tinha-o visto a sair do gabinete, de tronco nu, com as costas marcadas pelas chicotadas do cinto do capitão.


Tinha o medo de quem traiu estampado nos olhos, naqueles olhos negros imensos, saídos d um corpo escanzelado. Medo que lhe fazia tremer as pernas, medo da morte que talvez o esperasse de volta a casa.


E eu estava ali a beber cerveja e a comer amendoins, a passar o tempo, e o soldado a rir-se muito. Havia tão pouca coisa divertida naquele sítio!


Junto a minha casa, numa praceta que fica ao lado da Casa dos Bicos, juntam-se nas noites de Verão centenas de africanos. Vêem frequentar cursos de formação nessa altura do ano. Estão hospedados na pensão da casa amarela e em muitas outras pensões que ainda existem na baixa. Outros vêem dos subúrbios onde vivem, para saber noticias frescas da sua terra. Ali se encontram numa confraternização calma. É um murmurinho de conversas em crioulo. Falam e riem entre eles sem olharem para quem passa. Formam um mundo á parte de tudo o que os rodeia.

 Mesmo assim, quando atravesso a praça para ir apanhar um táxi, tento não olhar para as suas faces. Tenho medo, muito medo, que no meio daquela gente haja alguém que me olhe de frente. E que tenha uns olhos negros imensos, que me acusem pelo que eu assisti naquela noite quente e tranquila de Encheia, em 1973. Enquanto passava um pouco da noite a beber cerveja e a ouvir as graçolas do soldado Matos!

 Medo de que me acusem do crime de ter sido apenas uma espectadora passiva de um espectáculo inqualificável.






MANUELA CARONA